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Do trono de Tarcísio Meira à poltrona de Mario Frias

Independência ou Morte (Carlos Coimbra, 1972), emblemático sucesso de público à época, é tido historicamente como o melhor exemplar de um cinema oficialista feito durante a última ditadura civil-militar brasileira. Curiosamente, o filme é uma produção independente de Oswaldo Massaini, e não teve financiamento estatal. Com a destreza comercial de sempre, Massaini aproveitava o clima de festejo do sesquicentenário da Independência e o ufanismo do “milagre econômico” para lançar nas telas do país um drama histórico de qualidade, protagonizado por Tarcísio Meira (no papel de D. Pedro I) e Glória Menezes (como a Marquesa de Santos), à época no auge de sua fama como casal vinte da Rede Globo. O convite a Coimbra, diretor escolado no grande espetáculo histórico com seus filmes de cangaço, era a escolha comercial certa. E, como lembram José Mario Ortiz e Arthur Autran em capítulo do recém-publicado Nova História do Cinema Brasileiro, o mítico produtor da Boca do Lixo aproveitava também as “sugestões” do ministro Jarbas Passarinho, que instigava os produtores nacionais a realizarem filmes históricos sobre “homens como Borba Gato, Anhanguera, Paes Leme e outros bandeirantes paulistas […] para que o nosso povo tome conhecimento dos heróis e episódios que fizeram o país”. Soa familiar.

Na semana passada, circulou uma campanha da Secretaria Especial de Comunicação da Presidência da República, protagonizada pelo ator e atual Secretário de Cultura Mário Frias, intitulada, justamente, “Um povo heroico”. Inácio Araújo já fez uma boa análise do material na Folha, mas talvez algumas outras coisas surjam nessa aproximação ao filme de Carlos Coimbra.

Independência ou Morte é uma espécie de filho temporão da extinta Vera Cruz, com sua impronta industrialista, seu arremedo de classicismo à americana, seu estilo imponente, sua execução cuidada, seus contra-plongées sobre Tarcisão andando pelos salões ou seus travellings perfeitamente ritmados. Se Sinhá Moça (Tom Payne e Oswaldo Sampaio, 1953) ainda guardava alguns momentos de brilho – a fuga dos escravizados e especialmente a interpretação de Ruth de Souza – aqui os há em muito menor quantidade, como no momento de respiro, algo onírico, em que Glória Menezes percorre sozinha o interior do palácio e a câmera de Antonio Meliande baila junto dela. Quanto ao povo heroico, que no final de Sinhá Moça fica relegado ao fundo do quadro para o enlace derradeiro da mocinha Eliana Lage e do mocinho Anselmo Duarte, que se projetam sobre os corpos negros do alto de um pedestal, em Independência ou Morte este é – se tanto – um borrão ocasional, uma massa indistinta de mãos a saudar o soberano importado.

Anselmo frias

Se no filme de Carlos Coimbra o que interessa, desde o início, é a intriga palaciana, os quiproquós entre os ministros e uma muitíssimo bem-comportada sacanagem – destoando da produção mais inventiva da Boca do Lixo e assentando as bases estéticas para tantos dramas históricos subsequentes da Rede Globo –, no filme de dois minutos lançado pela Secom, Mário percorre uma sala repleta de objetos históricos e quadros indistintos, enquanto pronuncia um discurso difuso sobre a heroicidade do povo brasileiro. No texto, o heroísmo é reduzido ao “sacrifício pela família” ou a “dividir o mesmo solo”, enquanto nas imagens qualquer sombra de heroísmo é justamente isto: uma sombra, um quadro com baixa iluminação na parede, sob o olhar pasmacento do ator. Se o povo era segundo plano em Sinhá Moça e borrão indistinto em Independência ou Morte, aqui se tornou uma menção passageira, perfeitamente invisível, abstrato o suficiente para permitir uma identificação infinita – para ser herói, basta estar vivo.

O cenário escolhido para a campanha parece saído de um canto intocado pela luz de Rudolf Icsey em Independência ou Morte. Estamos nas antípodas do Eastmancolor tinindo na câmera suntuosa de Antonio Meliande, ou mesmo da direção segura de Carlos Coimbra. Até mesmo a música, que em Independência ou Morte era uma inofensiva – porém com algum humor – série de variações sobre os motivos do Hino da Independência, aqui se tornou uma peça recente de um compositor australiano. Se o filme de Coimbra era o veículo perfeito para o ufanismo nacionalista do governo de então – com direito a telegrama elogioso do próprio Médici –, o da Secom é um retrato preciso de um governo cujo aventado nacionalismo combina com bater continência para bandeira estrangeira, entregar e destruir tudo o quanto for possível, o mais rápido possível.

A imponência canastrona de Tarcisão, no auge da forma, projetando-se sobre a mesa de trabalho do Império, se transformou em um Mário Frias atarracado em uma poltrona que parece engoli-lo, enquanto profere bordões retirados do discurso publicitário corrente, da Bíblia ou do Hino Nacional (“encaramos com um brado retumbante o destino que nos encara”).

“Você já imaginou como seria se a gente pudesse olhar para a nossa história assim, do jeito que eu tô olhando aqui pros objetos aqui dessa sala?”, pergunta Frias no começo do filme da Secom, traduzindo quiçá o desejo oficialista que subjaz a Independência ou Morte: plasmar a história na parede e deixá-la lá, intocada e bela, a salvo dos rumores do mundo. História como objeto inteiramente disponível ao olhar, imóvel – e, portanto, passível de ser manipulada, mas nunca transformada. O que une ambos os filmes é o “elogio da história como monumento”, como escreveu Inácio Araújo. Mas o que os separa é que, no filme de Coimbra, era preciso assentar essa visão monumental do passado na monumentalidade da encenação, baseada na precisão livresca dos diálogos, nos bem cortados figurinos de época, na luz reluzente, no trabalho dos atores (ainda que o sotaque não convença, ainda que o cavalo de Dom Pedro refugue na hora do grito do Ipiranga). No filme da Secom, essa monumentalidade foi drasticamente reduzida: sobraram dois ou três quadros que mal enxergamos, a música em crescendo emocional e o texto pomposo.

O filme estrelado por Frias é um cruzamento estranho entre um desejo monumental e uma radicalização da estética bolsonarista, que há muito vem insistindo na exposição calculada de um amadorismo seguro de si – o pão com leite condensado na mesa de café da manhã sem forro, a Ave Maria na sanfona, a bandeira colada com fita crepe na parede. Durante muito tempo, as ficções do poder rimavam sempre com a excelência técnica, a qualidade fotográfica, a interpretação empostada. Mas as bases lançadas por Susan Sontag em seu influente ensaio “Fascinante fascismo” já não funcionam aqui. Se, com a ajuda da análise brilhante de Sontag, era possível perceber a bactéria fascista tanto nos filmes de propaganda hitlerista quanto nas imagens africanas de Leni Riefenstahl, o vírus do fascínio bolsonarista redobra a aposta, pois se manifesta num campo onde, tradicionalmente, as produções contra-hegemônicas é que deram o tom. “A técnica é haute couture, é frescura para a burguesia se divertir”, dizia Glauber Rocha em 1962. Se abrirmos o leque, o combate à ideia de qualidade, certo desprezo pela técnica apurada e o gosto pela improvisação sempre foram marcas das mais inventivas artes fílmicas brasileiras, de Carnaval Atlântida (José Carlos Burle, 1952) à Belair, de José Mojica Marins ao MC Negão da BL.

Se Marcelo Pedroso precisava dar um salto inesperado na carreira, contratar orquestra e maquinaria sofisticada para parodiar o desenvolvimentismo nacional em Brasil S.A. (2014), hoje talvez precisasse retornar à estética doméstica de Pacific (2009) para fazer jus às imagens bolsonaristas. Numa paisagem audiovisual em que a excelência técnica há muito deixou de ter a importância que teve um dia – e na qual floresce um conjunto imenso de poéticas amadoras –, o bolsonarismo encontra resistência, mas também um tecido fértil para se reproduzir. Se ao ver Independência ou Morte era preciso identificar naquelas cores cintilantes e naqueles bailes suntuosos o exato avesso da vida arruinada dos mais de três milhões de espectadores que foram aos cinemas assisti-lo, a virada cínica do nosso tempo não esconde nada: está aí, bem diante dos nossos olhos, esta visão pálida, soturna e empoeirada de um país sequestrado.


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