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Instantâneos passageiros

“Se você estiver exatamente onde estiver, então as pessoas eventualmente virão até você”.

Robert Doisneau

“Ontem eu ouvi a obra-prima de Bizet, pela vigésima vez. Novamente com terna devoção, novamente sem fugir. Este triunfo sobre minha impaciência me surpreende. (…) E realmente, cada vez que eu ouço a Carmen, eu pareço perante mim mesmo mais filósofo, um melhor filósofo: (…) tão paciente eu me torno, tão feliz, tão indiano (…) ficar sentado cinco horas: o primeiro estágio do sagrado!”

Friedrich Nietzsche

 

A arte do retrato, numa supra-arte do tempo e do movimento – do tempo capturado como movimento, da jouissance do tempo como objeto móbil – sempre usufruiu no cinema de privilégios de decifração aurática da persona jamais comparáveis a qualquer outra arte. Talvez porque o debuxo e o colorido de seu traço tenham herdado do teatro e da pintura o assombro pelo fora de campo, este horizonte fantasmático urdido de tempo que corteja com frequência os acontecimentos e coisas que se dão em campo com o fito de dotá-los de um peso de espaçamento (Serge Daney, sobre Duras) hermenêutico – então, como dito acima: de decifração do aqui e agora pela indeterminação de outros modos temporais, como o pretérito imperfeito, a redoma idealmente talhada do fantasma- ; do daguerreótipo ao instantâneo, – de Godard flagrando o flerte de Ana Karina com as coisas e os outros a Antonioni flertando com Vitti observando os devires do mundo -, e mesmo quando se destina a resguardar um Segredo, como está no princípio deste Passou de Felipe André (2020), o retrato tem por objeto antes de tudo a elucidação de um estado de coisas ou relação, a sua Revelação que se encarna numa persona adorada, e digo adorada porque o objeto que se almeja retratar é aquele com o qual nos identificamos infalivelmente, excluindo-se portanto aqueles odiosos ou desprezíveis.

Dito isto, celebro antes de mais nada o gênio cênico com o qual Passou nos representa seus retratos amorosos, mesmo que saibamos que ameaçados de morte pelo pretérito imperfeito, modo verbal da inconsistência diferida (um ano depois, Carlos fala: “Achei que não ia te ver antes de viajar”; Fábio faz uma escolha; todos sentirão saudade; Pedro recebe a visita de um fantasma) a que são condenados os discursos finitos, os discursos mortais pela natureza funebremente a posteriori da palavra: cada objeto ou uso deste – a garrafa onipresente de cerveja, o cigarro, o computador, a frontalidade descritiva dos corpos, a cidade do Recife, à janela ou enquadrada diretamente em dois perfis de plano geral Noturno que nos traz à derme da memória o Empire de Warhol, tudo forma um grande cadre coral para experiências evasivas que jamais se encontram perfeitamente adequadas a si mesmas, e possuem um uso indispensável de fixação no escrínio fenomenológico do filme; eles se encarnam na nossa memória como mementos dos personagens, como seus indissociáveis estofos, e isto na mesma e paradoxal medida em que os discursos desses personagens se constituem em fluxos absolutamente desenraizados – combalidos, incoerentes, intermitentes, interinos, passageiros – da experiência ‘a dois narrada”. É isto: à palavra ferida de morte pelo vácuo de uma vivência que não foi até o fim, que não foi suficientemente preenchida pela correspondência entre a palavra e seu objeto, e deixou a representação à deriva (“Sim, que ficam uns buracos, que a gente não quer entender”(…) “Era como se eu ali no meio fosse só um fantasma, como se ali tivesse só a minha sombra”) – , a força cênica de Passou opõe a recoleção de rastros ou objetos que ancoram o filme e suas derivas humanas no espaço vigente do mundo, coisa abandonada há muito pelos personagens e seus elóquios tantas vezes equívocos e espectrais (coisa passada sem ter sido devidamente decifrada, compreendida ou absorvida pela experiência falante, como um hieróglifo de que se perderam as coordenadas significantes de resolução).

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O que pode um corpo, quando o gestus vocal que o exprime é tão problemático? Em Passou, a tentativa e o erro se raccordam exemplarmente, como se não existisse a coisa sem a palavra, equívoca embora, que a designa e demarca, como se o verbo revelador fosse o ersatz (substituto ou sucedâneo) do substantivo estável mas opaco: antes de tudo este corpo habitado por uma palavra abstrusa é o lugar da elocução de uma tentativa de escritura, da Revelação significante daquele que ocupa o corpo; seus personagens falam incessantemente, falam para ocupar o ‘buraco’ de que fala o filme (en passant, pensemos que Lacan falaria do Real; e Heidegger, do ser-para-a morte, mas bem en passant, pois o filme se esquiva com maestria do crime flagrante do cinema conceitual, embora conheça tematicamente, como nos demonstra e mostra ao final, a diferença entre representação e presentificação), para abrir outros interstícios significativos no buraco, agora preenchido pela gesta amorosa ou amical; em todo caso, a palavra falada, cantada ou dançada, na cena de interlúdio sexual, é antes de tudo o exercício sensual para a escritura propriamente dita, o preenchimento da maldita folha em branco que é o subspecies de toda experiência suprema, e que não por acaso inicia e arremata Passou: o texto escrito, obsessão en sursis (em suspenso) da qual jamais chegaremos a nos libertar, leito de Procusto que condena o jovem intelectual ao impasse torturante de uma vida que só pode cortejar a dança, paradigma da experiência dionisíaca para o Nietzsche primeiro, ainda fascinado por Bizet, sob os auspícios mediatórios do interlúdio dionisíaco suscitado pela droga ou interlocutado pela metáfora. Os gestos do filme são mínimos, rarefeitos- e como não seriam? Quando a palavra é soberana, e a palavra soberana tantas vezes tatibitati, tão aquém de seu propósito desvelador?  E quando os corpos enfim se libertam num enleio devaneante é, como no melhor Garrel dançarino (Sauvage innocence) ou no primeiro Lucas Ferraço Nassif, numa dança primordial que recupera as potências de todos os rascunhos que ficaram por arrematar o grande Texto iniciático da vida íntima em um haxixe dançarino fluido, voluptuoso e eterno. Como se a requisitada reconciliação entre a letra amorosa e o espírito filosófico enfim se dessem sob os auspícios de Wagner, de Bizet mas também de Nick Drake, para ficarmos com os personagens e conosco. 

O final de Passou recita o Proust de “A arte é uma promessa de felicidade” porque, com este interregno tão dionisíaco do interlúdico dançarino e sexual, sublima e completa o tatibitati existencial dos discursos equivocados, dos gestos rascunhados, dos textos por-vir (interrompidos com frequência alvissareira pelo cigarrinho, pelo gole de cerveja ou vodka, para não dizerem que interrompi o texto por nada), engendrando uma obra de arte somática onde todos os momentos (mediações) do processo de criação do texto, a nossa obra de arte existencial e intelectiva, se presentificam, e não representam, – lembram-se agora do final, quando o professor de arte dramática revela para Pedro que prefere atores que presentificam aos que representam? Passou também acredita neste credo dionisíaco, e aplica à sua própria carne esta receita pós-cartesiana, nos mimetizando o ser apaixonado dos personagens (pelo Outro, mas também pelo texto por escrever, pelo álcool) em uma quadrilha a dois inebriante. Não é pouco, para filme de hora e dez, nos contar um Segredo e percorrer os caminhos de seu desvendamento sem se perder em aporias de obra conceitual ou auto-complacências de outras dionisíacas; este escapa a um e outro crime, pecando aqui e ali por uma defasagem de ritmo ou de mau gosto para com o extracampo (sobretudo nos excessos da desídia sexual) que no seu conjunto em nada contribuem para a profanação do filme. 


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