RoboCop, de José Padilha (EUA, 2014)

maio 5, 2014 em Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira

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A ironia do panfleto
por Pedro Henrique Ferreira

Quando, já consagrado no circuito artístico europeu, o holandês Paul Verhoeven chega aos EUA para rodar um filme futurista sobre Detroit, não teme meter a mão no vespeiro e discutir a questão mais urgente naquele momento: o Robocop de 1987 é o protótipo de um ideal de sociedade, o mecanismo exemplar de controle desenhado no interior do universo neoliberal – aquele que melhor serve a seus fins e que representa o paradoxo para o qual a sociedade americana parecia caminhar no final do século XX. É isso que anunciavam as reportagens e propagandas, metonímias irônicas do ideário americano, a decupagem meticulosa e a encenação estereotipada, interrompida abruptamente por momentos gore de violência e sangue. No filme de Verhoeven, o embate na criação do ciborgue policial é um reflexo de um outro embate, entre dois empresários galgando posições no interior de uma empresa, tornando-se uma fábula de como um interesse público (a segurança) é curvado aos interesses privados no sistema democrático liberal.

Aproximadamente vinte e cinco anos depois, o brasileiro José Padilha realiza uma jornada semelhante – se não tinha o mesmo prestígio que Verhoeven, ao menos ganhara o prêmio máximo em Berlim – e é agraciado com a prosaica missão de refilmar uma das maiores obras-primas no panteão dos filmes de ação dos anos 1980. Pois bem, a refilmagem de Padilha logo esboça uma atualização a um outro momento do mundo, e faz-se notável a distância que o brasileiro demarca do original. Já nos primeiros minutos, evocando a política externa norte americana dos anos recentes, surge um noticiário televisivo escandaloso com um âncora (Samuel L. Jackson) polemista a defender veementemente uma posição política, lembrando-nos do apresentador que exerce função narrativa semelhante em Tropa de Elite 2. O que era irônico, em Verhoeven, aqui se torna panfletário; da acidez transversalmente reveladora ao grito ululante, há uma certa urgência em denunciar e resolver o problema.

Urgência: a mesma palavra que parecia justificar o projeto dos dois filmes de ficção anteriores do cineasta (os dois Tropas); dar visibilidade, criar um burburinho a partir do qual se evidenciam posições ideológicas contrárias no interior da sociedade. Inúmeros artifícios cinematográficos – a câmera ofegante, que parece apressada demais para conseguir focalizar o objeto que filma; as encenações catárticas, nas quais todo momento dramático salta à flor da pele – contribuem para criar a sensação de urgência. A urgência é atraente. Quando bem trabalhada e aliada a um tema notavelmente contemporâneo ou um dilema atual, ela dispara no espectador uma necessidade de resposta moral imediata, uma tomada de partido, um “não poder ausentar-se” do debate que é, também, uma faca de dois gumes: por um lado, faz emergir (e muitas vezes, extracinematograficamente) as diversas tendências ideológicas em conflito na comunidade em que se insere; por outro, é enorme a chance de se dar respostas apressadas que, por sua vez, ficam escondidas sob o véu da catarse.

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No caso de Robocop, se o problema continua sendo o da segurança pública na sociedade democrática-liberal, qual é esta resposta? Já no noticiário inicial, o pêndulo da trama é colocado entre dois polos: de um lado está o milionário Raymond Sellars (Michael Keaton), representante do empresariado oligárquico que enxerga os Estados Unidos como um mercado aberto e possível para vender suas máquinas de guerra; do outro, o senador Hubert Dreyfuss (Zach Greiner), criador de uma emenda que, apoiada pela opinião pública, proíbe o uso de robôs na força policial norte-americana. O conflito entre o representante da força de mercado e o representante da força do estado de direito logo se torna um entre a robótica e a humanidade, a ação calculada e a ação emotiva – diapasão central no qual longa-metragem se deterá e ao qual dedicará boa parte de sua duração, incluindo algumas de suas cenas mais grosseiras (por exemplo, uma em que um violonista com mão mecânica diz precisar de emoção para poder tocar sua guitarra).

À primeira vista, a interpretação que o filme parece fazer do problema da segurança pública recorre ao direito humanitário como resposta. Padilha apela para o Estado; acredita nos ideais democráticos, ou no aperfeiçoamento da democracia (e, não à toa, o grande medidor para qual lado da balança pendem as escolhas é justamente a porcentagem da opinião pública) através da decisão emotiva – ultrapassando as relações automáticas da segurança pública para fazer justiça através do sentimento. O senador Dreyfuss, porém, representa uma ideologia sem prática. Não é o político e seu discurso que exercem maior efeito na sociedade, mas o ciborgue, aquele que age, do mesmo modo que, em Tropa de Elite 2, não eram as palavras de Fraga que transformavam aquele microcosmo, mas os atos de Nascimento. Retornamos, de uma forma distorcida, ao tema do mal necessário já presente na obra de Padilha, filtrado pelos Batman de Nolan, em uma cópia barata dos heróis trágicos de Ford. O destino da sociedade estaria nas mãos dos policiais e, bem, dependemos de sua boa consciência ou de seu bom coração para poder avançar como um todo.

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A questão que se coloca é: como isto poderia ser possível, se é parte da própria natureza da segurança pública a manutenção da diferença de classes e a submissão aos mais fortes? Como a justiça poderia ser feita? Não seria justamente pedir para que a segurança pública deixasse de ser aquilo que é? Uma coisa é o direito humanitário balizar a ação desenfreada de uma polícia que serve à elite – gesto cuja dignidade é ironizada inúmeras vezes em Tropa de Elite. Outra coisa, bem diferente, é se esperar que, no interior da instituição policial, possa brotar ou a consciência moral (Tropa de Elite 2), ou o sentimento humanista (Robocop), coisas que não pertencem a ela e vão contra sua própria formação. Esta esperança é espelhada no gesto redentor do ciborgue, que consuma o paradoxo contrariando a diretriz do software instalado em seu cérebro e apertando o gatilho. Ainda mais torpe é a conclusão moral, repetida por Dreyfuss nos derradeiros momentos do filme, de que a sociedade quer seres humanos, e não máquinas, como policiais, quando o que está em questão (e estava na versão de Verhoeven) é a própria existência da polícia, sua função na sociedade capitalista-democrática como agente pacificador, coibidor de mudanças, e como órgão que mantêm inertes as diferenças sociais sob as ordens do mais forte.

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Ainda que politicamente os dois Tropa de Elite sejam um desastre total, ao menos neles o sentimento de urgência, por mais que uma tática marqueteira, com tudo que ele carrega de positivo e negativo, se fazia presente de maneira mais potente. Em algum lugar nesta passagem aos EUA, ou neste meio caminho entre lá e cá onde em realidade a coisa toda se encontra, o diretor parece tê-lo perdido. E quando a urgência mesma não se apodera do expectador, a válvula de escape do diretor passa a ser se fiar na tentativa constante de criar um êxtase – as cenas dramáticas perdem a mão no tom; as cenas de ação, escuras e desorientadas geograficamente, ficam parecendo uma rave com os disparos cintilantes das armas, ainda que tenhamos enorme dificuldade em saber quem está atirando e quem está levando chumbo. Por mais que, como comentarista político, José Padilha seja ingênuo e panfletário, em seus outros filmes havia ao menos a capacidade de levantar temas tabus do presente. Infelizmente, desta vez, nem mesmo esta competência superficial deu as caras.

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