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A imagem antes do olhar

Ponderando uma tela branca em sua residência, com o pincel em mãos e prestes a tocá-la, o pintor e professor de artes Wladyslaw Strzeminski (Boguslaw Linda) é interrompido pela sombra avermelhada de um painel cobrindo a sua janela. Inicialmente, ouvimos o discurso ufanista em um megafone falando do governo socialista instaurado na Polônia. Em seguida, um plano mais fechado mostra a tela em branco que o pintor contempla ser tomada por uma luz avermelhada, oriunda de uma bandeira rubra de pano sendo erguida em seu prédio, cobrindo a sua janela. Strzeminski se levanta e abre um rasgo na cortina, que é parte de um enorme banner com a imagem de Stálin, para que a luz branca penetre em seu apartamento novamente. Logo, a polícia invade sua residência para a condução coercitiva.

Esta é a segunda cena do último longa-metragem de Andrzej Wajda, inspirado na história real do mais célebre pintor modernista que a Polônia já teve. Antes dela, há um prólogo construído para que o protagonista explique a sua teoria pictórica da afterimage, onde o sujeito observador retêm um lapso do objeto que viu, com as cores invertidas, indicando uma perspectiva mais subjetivista em relação à arte. Mas a sequência mencionada acima é mais significativa para o trabalho formal proposto pelo realizador do que o tratado estético do preâmbulo. É ela que, por um lado, será o gatilho narrativo que conduzirá a trama, pois irá inaugurar a situação de constrangimento do pintor com as autoridades políticas do país; e por outro, servirá como metáfora da relação conturbada do artista com a arte oficial (leia-se, o realismo social stalinista) do período.

Afterimage será outra empreitada de Wajda nos dramas individuais refletidos em momentos históricos conturbados, gênero que já lhe rendeu obras fortes como Cinzas e Diamantes (1958), Kanal (1957), ou mesmo Danton, o Processo da Revolução (1983), mas que recentemente tem lhe garantido mais fracassos que acertos em Katyn (2007), Walesa (2013) ou este. Não é exatamente que as coisas estejam fora do lugar. Muito pelo contrário, todos os elementos cinematográficos funcionam com uma certa congruência – da atuação de seu herói, à iluminação, cenografia e decupagem dramática – tudo opera de forma límpida, fornecendo ao espectador o espetáculo histórico almejado.

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É possível repetir, para Afterimage, a caracterização que Paulo Santos Lima fizera para outro de seus filmes: “uma verdadeira aula didática de história extremamente positivista, apontando simplificadamente sujeitos, apoiando ou não suas ações, como nas enciclopédias”. Diante do material que tinha em mãos, Wajda optou por atestar um mito em vez de explicá-lo e explorá-lo, tomando a história mais como certeza do que como um fato presente ou uma tábula rasa. O protagonista se apresenta como a figura heroica e, em torno dele, rondam vários personagens unidimensionais – os alunos que o veneram e existem somente para venerá-lo; a polícia ou os empregadores que estão lá somente para açoitá-lo – cujo propósito narrativo é não ser nada de interesse para além do modo como participam ou não do martírio retratado. Eventualmente, alguns raros momentos deste drama ainda adquirem alguma força, mas são logo suplantados pela previsibilidade de tudo.

A trama irá continuamente se aproveitar, como fonte dramática, da violência coercitiva do Estado contra o pintor que reprova o panfletário artístico, desdobrando-se cada vez mais, até colocá-lo na miséria e à beira da morte, tudo filmado de modo protocolar, com o mesmo academicismo e literalidade daquela metáfora mencionada acima. Mas não é o excesso de claridade do filme e de suas intenções que incomoda. É principalmente a sensação de que, no final das contas, bastava esta metáfora inicial. Ou nem ela. Talvez só um verbete ou uma nota de página nos dizendo que o realismo social stalinista foi um mal atroz.

A própria ideia de uma afterimage – fundamental inclusive para a existência do cinema – é colocada nos lábios do personagem principal, mas não é tomada como prescrição artística. Professa o olhar singular, mas o longa-metragem opera através de imagens simplistas que repetem os ícones legados pela história em vez de reinventá-los pela singularidade. E, se as imagens não chegam a ser exatamente publicitárias, seguem muitos dos cacoetes das superproduções de filmes históricos do circuito de arte, cujo intuito seria aparentemente ensinar, mas que não conseguem muito mais do que nos distrair. No final das contas, não é a imagem após o olhar; é a imagem antes do olhar, neste sentido, cometendo um pecado igualmente próximo ao que cometeu o realismo social (o de Jdanov, não o de Lukács).

Afterimage não apaga a carreira tão prolífica que Wajda teve, mas deixa o desejo de que o seu autor não fique lembrado por um de seus fracassos. Não se trata propriamente de condenar ideologicamente o filme, pois houve obras ímpares na história do cinema do leste europeu que também saltaram à jugular da repressão causada pelo realismo social stalinista (por exemplo, A Mão, de Jirí Trnka), e o fizeram de modo exemplar. E o contrário também é verdade; mesmo Mikhail Romm, no coração do Estado Soviético, tem bons filmes. Nem todo filme que está do lado correto da história é um bom filme. Nem todo filme que concorda com o que acreditamos é um bom filme, e nem todo filme que discorda é um filme ruim. Parece óbvio, mas esse postulado parece andar um tanto esquecido.


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