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Uma apresentação

Em Maio de 2016, a Cinética completou dez anos de existência. A celebração alegre e justa da longevidade ativa e o conforto dos sapatos velhos colocavam resistência pertinente: por que mudar?

Ainda sim, como se vê, mudamos. Novamente. E, mais do que uma carta de explicações ou um editorial – formalidade que se faz supérflua daqui por diante, embora os trabalhos da editoria permaneçam vitais para a existência da revista – cabe aqui sobretudo um convite, uma breve rodada de apresentação ao leitor que à nossa casa torna, com as intempéries do tempo.

Por um lado, as evidências falam mais alto: embora a reforma editorial empreendida em 2013 tenha permitido à revista um refinamento maior dos textos e das ideias compartilhadas pela redação, do final de 2014 para cá tal formato vem se revelando insustentável. Mesmo repletas de textos e proposições que julgamos fortes e pulsantes, as edições sucumbiam ao atraso das circunstâncias, tornando esse modelo editorial pesado e insuficiente.

Por outro, são os desejos que se impõem como prática: se a Cinética vinha às turras com o formato que ela mesma se auto-impôs, é porque ele já não mais realiza a revista que queremos fazer. Por que, no fim das contas, forçamo-nos a necessidade de mudar?

Em On Knowing: Essays for the Left Hand (1962), o psicólogo e estudioso do processo criativo Jerome Bruner comenta das limitações encontradas, à época, pelo seu meio: “Por nossa profissão ser jovem e por sentirmos insegurança, não gostamos de admitir nossa humanidade. Nós apropriadamente buscamos um traço de distinção que nos separe de todos os outros que ponderam igualmente sobre a condição humana – distinção proveitosa, pois dela surge uma nova disciplina. (…) Sinto que esse fetiche auto-imposto por uma objetividade tem impedido que possamos desenvolver um gênero literário próprio”.

Assim como a protopsicoliteratura proposta por Bruner, a crítica de cinema é arte jovem, e as publicações online, mais ainda. O espírito originário da Cinética carrega o fardo de uma relação ambígua com a tradição crítica. Ela é motivada pela consciência da história do pensamento sobre cinema que perpassa o movimento das obras, e que, no caso brasileiro, encontra limites e forças específicas do próprio modo como o cinema se configurou no país a partir dos anos 1990. Mas, igualmente, ela é também alimentada por uma inclinação para o novo, para a (re)fundação dos modos de reflexão, cooptados por certas estruturas de legitimação. A relação nem sempre harmoniosa entre um modelo de crítica almejado e a realidade prática da necessidade de fazê-la num ambiente cultural no qual ela nunca se firmou se manifesta nos diversos trajes que as revistas eletrônicas vestiram para entrar no baile de máscaras da cultura.

Na busca por modelos que organizem e ao mesmo tempo produzam distinção dos campos já atuantes (tanto dentro da crítica de cinema quanto das outras formas de publicação de texto online), terminamos, no fim das contas, limitando tudo que o novo meio que escolhemos para nos expressar tem de possibilidades, trocando-o por moedas de seriedade e respeitabilidade intelectual, e cuja força, no melhor de sua atuação, estava no questionamento das respectivas medalhas de seu tempo. Ao tomar de empréstimo apenas o formato já consolidado pela mídia impressa, trouxemos, com ele, o peso de seu padecimento, sem ganhar a gramatura da folha entre os dedos. Para que servem aviões de papel quando os textos, por força de condição, já nascem esparramados pelo ar?

Tomamos, então, o impulso dessa implosão como plataforma de reflexão para buscar voos mais livres. Desse desejo de liberdade, surge um formato mais simples e direto, que favorece a maturação individual de cada texto à periodicidade programada. O desejo, porém, vem de duas constatações, que no fundo são uma só: a organização cinefílica por critérios de tempo (das datas de lançamento às durações) já não se dá da mesma maneira, devido a mudanças radicais de tecnologia e cultura; tampouco se dá a organização por espaço (salas comerciais, festivais, televisão, salas de repertório, museus, torrents), por motivos semelhantes. Essa porosidade esteve no horizonte da transformação da cinefilia nos últimos anos e sua potência será sempre mitigada enquanto se insistir no estabelecimento de cercas e não na frontalidade do confronto. Mais leve e autônoma, a cinefilia hoje se organiza a partir de impulsos outros, não necessariamente mais espontâneos, mas que, somados, criam um verdadeiro corte epistemológico.

Interessa-nos, portanto, buscar uma nova possibilidade de texto que melhor dê conta deste espaço-tempo que define a cinefilia hoje, que permite que os filmes sejam colocados em dialética como objetos não exatamente atemporais, pois o posicionamento em relação ao presente afeta a realização e o entendimento das obras, mas de certa maneira supratemporais, capazes de subsumir os grilhões catalogadores dos estudos culturais. Interessa-nos partilhar uma possibilidade de historiografia oferecida mais abertamente à generosidade e critério do leitor, favorecendo uma escritura e uma leitura mais errantes, movidas mais por espasmos de paixão do que por prestações de contas às contingências presentes.

A escrita, ferramenta de fixação e cristalização desse pensamento móvel, se abre assim para um futuro, um ponto brilhando ao longe num horizonte que ainda não se vislumbra. “Cada pensamento é uma exceção a uma regra geral que é de não pensar”, escreveu Paul Valéry em um de seus Cahiers. Aos textos, caberá sobretudo a função de abrir parênteses que talvez jamais venham a ser fechados. Aos filmes, dedicaremos, integralmente, as reticências de uma conversa permanente.