Sangue Azul, de Lírio Ferreira (Brasil, 2014)

agosto 1, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo, Em Cartaz

* Cobertura do Festival de Paulínia 2014

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Sedução das águas
por Marcelo Miranda (colaboração especial)

Quando Edgar Morin escreveu sobre mito e sedução no cinema, enfocou a figura do ator como
persona muito maior do que os personagens que interpretava. Nomes como Marilyn Monroe e
James Dean eram base do ensaio de Morin, junto a todo o imaginário em torno dessas figuras
próximas da divindade. O resgate, aqui, deste livro de Morin (justamente chamado As Estrelas –
Mito e Sedução no Cinema) para falar de Sangue Azul, primeira ficção do pernambucano Lírio
Ferreira depois de Árido Movie (2005), se deve muito mais à “sedução” que ao “mito”. Porque
toda a apresentação do filme, do primeiro ao último plano, parece carregar de maneira muito
forte e evidente a vontade de seduzir, de chamar atenção via o flerte, o olhar desejoso, o convite
à intimidade.

As locações na ilha de Fernando de Noronha são o corpo desta sereia fílmica que é Sangue
Azul, e atores de beleza lapidar (Daniel de Oliveira e Caroline Abras) servem como seus
membros a chamarem para o encontro. Nas imagens iniciais, em preto e branco, nada é dito nem
revelado. Uma trupe de circo chega a uma ilha, onde eles montam a tenda e preparam as
apresentações noturnas. O filme ganha cores fortes quando um enredo passa a ser delineado –
especificamente, quando o Homem-­Bala interpretado por Daniel de Oliveira se atira à rede
protetora pouco depois de ver a família (mãe e irmã) sentada na plateia. A entrada da cor é
significativa não apenas por delimitar a mudança de chave no tom da narrativa (ou, mais que
isso: em levar o filme efetivamente a uma narrativa), mas especialmente por oferecer ao olhar as
belezas e toda a natureza do local onde a história se ambienta. O azul do mar, o verde das
águas, o vermelho das roupas: tudo explode na fotografia de Mauro Pinheiro Jr, tornando os
corpos humanos elementos também essenciais da paisagem.

Como nos tradicionais contos do “estrangeiro” que chega a uma comunidade e a modifica, o
Homem­-Bala é o fantasma do passado a assombrar os moradores da ilha com algo que o filme
insinua, mas demora a revelar, aos moldes dos contos da canadense Alice Munro. Mas se, na
literatura desta autora, a omissão existe para o impacto vir com mais força – e, até chegar lá, há
uma maquinaria de relações e afetos concretos na qual cada palavra se soma a um cenário
maior –, em Sangue Azul o interesse está mesmo no potencial de maravilhamento de suas
imagens. Porém, nem sempre a beleza é suficiente para se sair do cartão postal audiovisual e
atingir alguma potência para além da sedução (que o diga À Deriva, 2009, de Heitor Dhalia, e
sua fotografia de butique), e aí que Sangue Azul se complica, pois as conexões que o filme tenta
estabelecer entre os personagens esbarram na ânsia em fazer com que as imagens explodam
mais por fora do que por dentro, com que elas signifiquem mais do que representem. Até quando
se vai filmar um corpo nu adentrando a água do mar como metáfora do renascimento, da
renovação, do reinício? Para que o rodopio 180o da câmera numa cena de sexo, se não pelo
puro fetiche da estripulia?

Em crítica aqui na Cinética sobre Um Estranho do Lago (Alain Guiraudie, 2013), Fábio Andrade
cita o ensaio de Gaston Bachelard sobre a presença poética da água na arte e reproduz trecho
em que o autor assume­-se na voz idealizada de um lago como espaço no qual tudo está
presente e refletido. “O mundo é a minha representação”, sugere Bachelard. Sangue Azul parece
inverter esta ideia e afirmar que sua representação (da água, dos corpos, das relações) é que é o
mundo. O filme de Lírio Ferreira tem por obstáculo as próprias ambições a respeito de si mesmo,
pois poetiza a água como o símbolo absoluto, como a essência daquilo que esconde e também
do que revela. Ele quer seduzir pela força metafórica disfarçada de poesia e fazer da água o elixir
que a tudo pode “curar”. Não por menos, o momento-­ápice dos irmãos se tocando e se beijando,
depois de todas as insinuações, se dá dentro da água, iluminado pelo sol refletido na superfície
do mar; por sua vez, o sexo homossexual do marido com o “homem mais forte do mundo” do
circo acontece às escondidas, numa árvore, à noite, às escuras. Um “pecado” é redimido pelo
banho divino, o outro “pecado” inicia a desgraça do personagem cuja carência afetiva revela a
ele mesmo outro tipo de desejo.

Por mais que aparentem a autonomia de um microuniverso, todos os núcleos do filme estão
submetidos ao casal de irmãos, cuja beleza talvez só exista para suprir um ao outro, e o
coroamento dessa vontade reprimida pelas amarras sociais só pode acontecer longe da
civilização e dentro do mar – para, em seguida, vir a cena da entrada purificadora na água.
Sangue Azul faz desse idílio algo próximo ao mito (reforçado pela presença de Ruy Guerra como
uma espécie de sábio da ilha, a contar para crianças as histórias secretas do lugar), e suas
imagens são a sedução que o filme acredita ser necessária para atrair a quem colocar seus olhos
ali. Mito e sedução no cinema.

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