Ventos de Agosto, de Gabriel Mascaro (Brasil, 2014)

setembro 24, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

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* Nova versão a partir de texto publicado em Agosto de 2014.

Ela está sempre lá
por Raul Arthuso

No primeiro plano de Ventos de Agosto, a câmera acoplada a um barco começa embrenhada na mata virgem até sair por uma clareira que revela um rio maior. Na ponta do barco, uma mulher de costas para a câmera observa imóvel o que há pela frente. Após o corte, a mesma mulher, o mesmo barco, a mesma posição, mas agora no mar aberto: é o movimento contrário do descobridor que, vindo do mar, adentrara o interior. Ventos de Agosto seria, então, um olhar de retorno, um reverso que mergulha no Brasil profundo em oposição ao olhar da faixa litorânea moderna e desenvolvida, em busca de uma pureza mais natural ligada à terra e seus eventos mais íntimos, não estivesse essa possibilidade de pureza já corrompida: um banho de Coca-Cola no corpo lascivo de Shirley (Dandara de Morais), que se expõe ao sol lancinante dos trópicos ao som do punk rock inglês, à espera que Jeison (Geová Manoel dos Santos) volte do mergulho no Atlântico.

Se é possível pensar no “arcaico” para o qual o filme se volta, ele reside mais em uma ideia: o vilarejo de pescadores e artesãos com um modo de subsistência ligado à terra, ao coco e à pesca; a vida de simplicidade material; a natureza exuberante cercando os habitantes; a tecnologia ainda artesanal que fascina quando se pensa que Ventos de Agosto é um filme brasileiro do século XXI, quando o país não é o “do futuro” e sim o “da vez”, com lugar de destaque dentro no imaginário das nações. Este arcaico, contudo, não resiste ao visível. Junto dele convive o moderno, a cultura urbana do rock ou das técnicas de tatuagem, a motocicleta num lugar onde só é possível chegar ou sair de barco, o celular com sinal precário, a fotografia – estopim de uma visualidade propriamente moderna – e seus recursos de manipulação por computador que permitem juntar fotografias diferentes numa só, como prometem colocar a imagem dos mortos no céu, pois lá eles estão. O natural – a paisagem, o corpo, o artesão – convive com o tecnológico – o industrial, o produto, o artista.

Evidentemente, colocar o arcaico e o moderno no mesmo balaio não é novidade. Sua sobreposição para dialogar com certo desenvolvimento da sociedade brasileira é artifício recorrente no cinema brasileiro pelo menos desde Bye Bye Brasil (1980). Em dado momento, numa notícia de TV (mais um sinal de modernidade), a âncora pergunta: “O que está acontecendo com o nosso país?”. O mar está tomando a terra em vários pontos do litoral e isso atinge também o vilarejo de Ventos de Agosto. Uma transformação iminente se impõe. E, então, coloca-se um impasse sobre a própria ideia de “Brasil profundo”, segundo a qual seria possível olhar para uma natureza mais bruta e sensível. Não é mais possível um olhar de identificação com algum passado distante ou um estado natural – não estamos na comunhão com a paisagem de Aboio ou a universalidade espiritual de Girimunho. Ventos de Agosto habita um país em transformação que, por sua vez, é mórbida – o cemitério na praia, a avó que dialoga com os mortos, a massa densa de nuvens sobre os trópicos que aparece no mapa do técnico de som que capta os ventos. Algo denso, nebuloso e irrefreável está acontecendo, mas aparentemente ninguém ninguém se dá conta, pois a vida no filme é de uma insignificância assombrosa, automatizada nos rituais e na incorporação de elementos contraditórios daquele cenário. Mesmo o sexo reproduz essa morosidade própria do balançar das árvores contra o vento, fazendo-se mais de êxtase que luxúria. Aproximar-se, então, dessa pequena sociedade como uma forma de descobrir algo primitivo, inocente ou, na melhor das hipóteses, transcendental como exemplo ou ensinamento seja lá do que for, é apenas primitivo, inocente ou idealista. Afinal, o primeiro olhar do filme para o corpo e a paisagem é um movimento que sai, não que chega – não se trata de descobrir ou revelar algo, que já não faz sentido. Ventos de Agosto vai ao pulmão da pedra para buscar o corpo todo. Ainda que se passe num “Brasil profundo”, o lugar que interessa ao filme é no litoral em vias de ser consumido pelo mar – e o sertão então talvez vire mar? – mais uma sobreposição problematizadora desse país em transformação.

Nesse quadro, o filme guarda uma relação profunda com a morte. Transformação pressupõe algo que deixa de existir – ou que, pelo menos, se reconfigura em outra coisa. O que mais se acumula na praia são corpos mortos. A morte ronda as personagens e o próprio filme que, com sua estrutura em três “movimentos” muito claros pela presença-foco em um personagem determinado, morre e renasce a cada nova parte, flertando com o próprio fim iminente, como que resistindo ao seu incontornável terminar. Em Ventos de Agosto, o personagem de um técnico de som (interpretado pelo próprio Gabriel Mascaro) que capta os ventos da região aparece também flertando com a morte, na luta contra a natureza tormentosa dos trópicos. A geração de Mascaro realizou alguns filmes dialogando com o luto. Estrada para Ythaca (2010), Pacific (2010), A Falta que me Faz (2009), Girimunho (2011)… várias obras em alguma medida lidam com a ideia de uma perda, muitas vezes inominada, mas compartilhada por personagens e realizadores. Aqui, Jeison entra num grande luto por um corpo desconhecido encontrado no mar (seria o técnico de som-diretor do filme?). Ele se identifica com o morto, é fascinado por ele, cuida do corpo ao mesmo tempo em que vê essa morte interferir em sua existência, rotina e relacionamento (sexual) com Shirley. É impossível identificar o morto pelo processo de decomposição (“os peixes comeram tudo ele”), mas ao mesmo tempo é impossível se livrar dele. Impõe-se a pergunta feita por Godard nos anos 1970: “Que Fazer?”. Se essa pergunta é a mesma suscitada por Brasil S/A, isso é porque Ventos de Agosto é a resposta existencialista à mesma realidade objetiva do filme de Marcelo Pedroso.

Pois esse morto é o Brasil, o país onde essa geração nasceu e que os anos Lula vieram transformar. É o “país do futuro” que virou o do presente, o país provinciano hoje potência internacional. Um cemitério na areia da praia do vilarejo tem em uma das cruzes que servem de lápides um nome curioso inscrito: Otto Bastos. Coincidência ou uma corruptela proposital do nome do ator de Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)? A realidade extra-fílmica, representada pela meteorologia que avisa que a água está tomando a terra, anuncia que o sertão está virando mar. No final do filme, os habitantes do lugar fazem uma pequena barragem para proteger o cemitério do mar invadindo a praia; mas a água, implacável, sobrepõe-se à barragem e toma o cemitério sob o olhar inebriado de Jeison. A realidade se impõe – mais uma vez – sob o olhar assombrado de nosso luto.

Esse impasse é o de geração: o luto precisa ser expurgado. É esse o movimento nas entranhas de Ventos de Agosto. Por mais que a identificação com o morto seja legítima, não se pode velá-lo eternamente. O que fazer? Alguma coisa. Talvez por isso, exista uma inquietação na própria formulação do olhar do filme, que confirma o cinema de Gabriel Mascaro como uma indagação da forma de aproximação. É possível enxergar no filme um impasse de procedimentos – não é exagero dizer que, num trajeto cinematográfico ainda em construção, Ventos de Agosto é o ponto de crise em que as potências revelam as fraquezas e as questões denotam problemas.

Pois o cinema de Gabriel Mascaro tem uma proposta muito clara de olhar para a realidade. Se sua geração se preocupa com a autenticidade frente ao objeto filmado, Mascaro busca olhar antes de estender a mão para alcançar o objeto. Ele não é um formalista ou um esteta, mas, com o problema que se coloca diante do artista de expressar a realidade, seus filmes tateiam a própria forma. A questão do registro frente a uma determinada realidade é o elemento que mais chama a atenção em seu filmes, e, se é impossível, por sua vez, falar em um “estilo Mascaro”, isso se dá pela própria natureza incerta de como se aproximar de algo para filmar. Cada um de seus filmes traz uma particular forma de fazê-lo, seja intervindo abertamente ao criar situações ficcionais para compôr o painel de personagens de Avenida Brasília Formosa (2010), criando uma ficção extra-filme para tornar Um Lugar ao Sol (2009) possível, ou a filmagem de aquário de Doméstica (2012), no qual o diretor é mais um orientador do material filmado e seu trabalho discursivo se mostra nas escolhas de montagem em que busca criar relações, pequenas narrativas no interior de cada registro ou dar ênfase a momentos deslumbrantes latentes no material bruto – ou talvez Doméstica seja uma grande ficção que não quer se dizer como tal? Em todos os casos, busca-se o olhar do mergulho na realidade.

O impasse aqui se dá primeiro por ser uma ficção de fato, diferente dos outros filmes de Mascaro, cuja matéria real se fazia sempre um elemento dominante em alguma medida para a força do discurso – mesmo em As Aventuras de Paulo Bruscky (2011), que, curiosamente, é um falso documentário buscando se aproximar do universo do artista Paulo Bruscky. Em Ventos de Agosto, o impasse se coloca na conjunção de dois registros que convivem: um registro abertamente discursivo e outro contemplativo – falar em “ficcional” e “documental” seria mais claro, porém mais inocente.

Assim, existe um olhar que se deixa levar pela exuberância dos movimentos dos homens que trepam nas árvores para pegar o coco, que se fixa na beleza dos corpos e nos gestos próprios de certas ações do trabalho e das relações, um olhar de observação que se deixa fascinar, mantido a certa distância, como quem se coloca intruso esperando sua brecha – algo muito similar aos procedimentos de A Onda Traz, O Vento Leva (2011) na precisão dos tempos e na distância. Por outro lado, há momentos de diálogos construídos, uma encenação mais forte, de aproximação das entranhas das personagens – olhar que se mostra mais desconfortável, pois expõe as fraquezas principalmente dos atores coadjuvantes em torno de Shirley e Jeison, deixando evidente certa fragilidade do texto escrito, e impõe as limitações de realização do próprio filme.

Nas várias cenas com o personagem do técnico de som encarnado pelo próprio diretor, enquanto Mascaro continua em sua personagem, dialogando de acordo com uma necessidade da narrativa, os não-atores que com ele contracenam olham para a câmera, riem, saem e voltam para a cena como tomados pela presença da câmera. São momentos maravilhosos nos quais, no mesmo plano, o “posado” da encenação fica evidenciado pela presença de Mascaro, e a fluidez do olhar das pessoas demonstra a inoperância dentro da situação de construção ficcional delas, ao mesmo tempo revelando aquelas personagens quase passageiras do barco que é Ventos de Agosto. Não à toa, o viajante que capta os ventos tem vários problemas com ventanias e chuvas: a realidade se impõe – com força, doçura, surpresa ou inoperância.

As costuras da narrativa ficam várias vezes em evidência, mas é interessante que esse impasse seja próprio do jogo do filme, mantendo o gesto de composição do artista em contraste com a força do objeto filmado na tela. As cenas são frágeis; ao mesmo tempo, as vistas são maravilhosas. Sua sobreposição cria uma dialética da própria busca do realizador pela forma que perpassa o seu cinema, aqui trazida para o centro: como realizar uma arte realista, valorizando a autenticidade do lugar, dos corpos, dos gestos, da fala, ao mesmo tempo em que se cria um discurso? Nesse sentido, todos os filmes de Mascaro tendem para a ficção, pois é a mão carregada na construção do discurso o lado evidente das narrativas. Paradoxalmente, Ventos de Agosto lida com natureza, tropicalidade, corpos, gestos para, em verdade, ser o mais cerebral dos filmes brasileiros de sua geração.

O impasse – consciente – é que a realidade sempre está lá. O papel do cineasta, seu gesto e sua mão, é verdadeiro motivo do impasse. Ou, como diz a música de Zezé di Camargo & Luciano gravada pelo viajante que capta os ventos – ou colocada em pós-produção por Gabriel Mascaro? – “preciso de você aqui”. A realidade se impõe; mas em arte, ela por si só é uma ausência. Curioso – e contraditório – como o diretor brasileiro hoje com, talvez, o maior impulso de registrar o real seja aquele cujo vetor de trabalho está mais voltado para si próprio e seu olhar.

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