Permanência, de Leonardo Lacca (Brasil, 2014)

outubro 23, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Fabian Cantieri

* Cobertura do Festival do Rio 2014

permanencia

Filmando o invisível
por Fabian Cantieri

“Só nos curamos de um sofrimento depois de o haver suportado até o fim.
Para quem ama, não será a ausência a mais certa, a mais eficaz, a mais intensa, a mais indestrutível, a mais fiel das presenças?”

Marcel Proust

Permanência não poderia ser mais certeiro na escolha do título: quando um casal se desata e caminha cada um para um lado, existe algo que perdura… sempre. O primeiro trabalho pós-termino é aquele de tentar lidar com a dor, mas lidar não é afugentá-la e trancafiá-la distante eternamente, mas escondê-la, camuflá-la, abafá-la bem de perto, até que a tristeza incorporada seja absorvida e ajude a mover adiante, empurrando para outra dinâmica, seja a da autonomia e independência solitárias, seja a de uma outra parceria. No filme de Leonardo Lacca, o velho casal é empurrado, ou se empurra, para uma nova companhia, mas quando Ivo (Irandhir Santos) vai a São Paulo para sua primeira exibição de fotografia e resolve ficar hospedado na casa de sua ex-namorada Rita (Rita Carelli), o espírito soterrado de inquietação emerge.

Rita é casada, mora com seu marido; Ivo também tem sua namorada em Recife. Permanência é esse espaço de tempo de encontro que se sabe a princípio efêmero, mas que se tensiona na dúvida de um prolongamento – se não em sua extensão propriamente dita (o casamento, as relações outras são postergadoras de uma imediaticidade), em sua potência de realização. Do passado, não se abstrai uma nostalgia; talvez uma saudade, mas que, de qualquer jeito, não fica lá atrás: o que se vê é um choque do presente, do encontro entre os corpos que gera combustão. Algo de manifesto nos dois e entre os dois irrompe desde o reencontro na cozinha, mas para isso resultar em ação concreta cabe ultrapassar o fardo dos laços estabelecidos in between.

Narrativamente, o filme é todo construído para se alcançar o tom de esvaziamento, de irrecuperabilidade, de materialidade perdida que se vê na foto, tirada por Ivo, de Rita com seu marido. Seu olhar, sua postura, sua verdade é a de quem carrega algo de vão, de iminentemente perdido. O segundo olhar, o de Rita olhando seu próprio olhar na foto, é o da percepção de que se é possível se auto-enganar por um tempo, mas nossa própria imagem nos delata sempre quem realmente somos.

Permanência é um filme de silêncios. Mas, como apontava em Obra, não um silêncio lacunar para ser preenchido por fora da cena, pelo desenho sonoro ou até pela diegese conjuntural do filme como um todo. Aqui reside um silêncio dramatúrgico que deixa frestas para o respiro do pensar, para os atores reagirem, para não abalar o estar aí dos intérpretes, que se transformam em personagens por entre esses vãos de respiro. Permanência é um filme sobre esse invisível que permeia as relações humanas: a inominável latência de uma química no ar.

Existe um conceito no budismo que é o de impermanência. Na sua apropriação japonesa, este revolve a uma ideia de um pathos das coisas (mono no aware): a existência não circula só ao redor dos corpos, mas por entre as coisas. Nesse sentido é que Ozu é o mais japonês dos cineastas japoneses: é aquele que externaliza sentimentos não só em closes, expressões faciais ou pura fisionomia, mas em enquadramentos onde pai e filha dormem num tatame com um vaso ao fundo harmonicamente posto; que cria elipse sem fusões ou denotações do tempo fluindo, apenas com objetos, podendo ser um varal, fios elétricos ou uma panela de arroz. Ao filmar o invisível, Leonardo Lacca precisa alcançar outra coisa transcendente aos dois: a câmera analógica não é só fetiche, nem virtualidade, mas física, material; o café é um elo da memória, uma circunstância dos costumes… o abrasileiramento do arroz ozuniano.

Na vertente indiana do budismo sobre o mesmo conceito de impermanência, lida-se com a transitoriedade universal e a impossibilidade de mudanças das coisas: todas as coisas do mundo são sujeitas a causa e conseqüência, logo impermanentes. A aparente continuidade das coisas é como o movimento enganoso do cinema: quadros intercambiáveis que geram uma imagem fluída. O filósofo budista Vasubandhu então percebe que as coisas “precisam se auto-destruir, pois a destruição não pode ser causada”. Permanência se cria e se esvai – porque no cinema também nos atemos não mais à imagem, mas ao que perdura dela – com a impossibilidade de se auto-destruir, com a necessidade de sabotar uma relação que, por querida demais, se faz paradoxal findar-se. Amar é reconstruir-se, sempre.

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