Obra, de Gregorio Graziosi (Brasil, 2014)

outubro 4, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Fabian Cantieri

* Cobertura do Festival do Rio 2014

obra

A integridade de desmoronar-se
por Fabian Cantieri

“Toda cidade foi construída por toneladas de covardia”

O Fim de uma Era, de Bruno Safadi e Ricardo Pretti

 

São Paulo é uma cidade-(bomba)-relógio. Essa é uma primeira e rápida constatação que temos com alguns filmes paulistas recentes. Mas, diferente do que se poderia suspeitar, o primeiro filme de Gregório Graziosi não é catalisado pela velocidade frenética da cidade ou por seu fluxo insurgente de movimentos opressores: o tempo, o trabalho, o espaço em contração, as pessoas e suas condutas diante da necessidade de responder a essa velocidade exponencial da urbe. Obra flagra um outro processo de dominação: a ascensão de uma classe de elite às custas de uma maioria esmagadora e esmagada.

O gesto político não vem empunhando bandeiras e se dissimula da palavra pra dar de encontro a uma sensorialidade primeira. A narrativa panela de pressão é construída pela contingência do invisível no plano: foge dos personagens, mas está lá ao seu redor. A compressão a cada elipse ganha contornos de intensidade que se contrastam com o vazio do significante aparente da cena. Este vazio, que está sempre latente pela escolha de uma janela em scope, precisa escorrer de alguma forma para a superfície da tela, mas isto não acontece pela duração, pelo escoar do tempo, ou por uma montagem que corte e amplifique a décalage. Assim como em Cores (2012) e Riocorrente (2013), isto é feito pelo desenho sonoro. Ou seja, a modelagem da cerâmica fílmica não se faz ao pôr-em-cena, mas num trabalho posterior pelo qual a impalpável natureza dos sons ganham estatuto representativo de uma sensação inominável.

Essa trilogia de filmes paulistas – ou, mais especificamente, esta instrumentação cênica – pode ser representativa de um sintoma. Se existiu um deslumbramento na virada do século com filmes que escapavam de uma narrativa mais tradicional, e que também se desligavam do maneirismo, conduzindo o espectador a ter uma experiência de outra natureza com o cinema que não a racional, da decodificação, da leitura catártica de sentimentos (Last Days, Eternamente Sua, O Intruso, Café Lumière), era porque estes filmes exploravam justamente o assignficante do mundo e o incorporavam. Esta procura era seu objeto e para isso tomavam a câmera como instrumento a captar um sentido porvir do seu entorno (é interessante pensar na dispersão do areal de referências onde Van Sant, Denis, Joe, Hou podem nem ser conhecidos pelo cineasta em questão; o filme espelho de Cores, por exemplo, era Estranhos no Paraíso, de Jim Jarmusch, mas existia um tratamento para com a matéria que o colocava a par desta conjuntura contemporânea de construção fílmica). Em Obra, a edificação se faz por outros meios: o desenho sonoro está lá para enaltecer uma ambiência que pesa sob os ombros do arquiteto João Carlos (Irandhir Santos), o ménage, oco de qualquer sentido, é consumado entre elipses e, substancialmente, a hérnia como metáfora de um legado ancestral que se quer negar, se quer transformar.

Distanciamo-nos, então, da estética do fluxo que surfava apenas por entre as aparências da superfície do quadro para nos deparar com um esteta do plano, simbólico até a raiz. A metáfora nunca é um problema em si – isso arruinaria um século de cinema em um estalo – mas aqui cria, de novo, um subterfúgio para a implementação da narrativa. Ela se desconfigura como um instrumento de se contar a estória, para virar o epicentro formal e sensível de origem do filme, de onde toda a prerrogativa da Obra parte. Mas, assim como o desenho de som, ela é incapaz de dar sentido às cenas, uma a uma. A metáfora, então, apenas assimila um significado anterior para poder retribuir futuramente na narrativa, enquanto os meandros vagueiam à parte dela. Um pouco como escreve Victor Guimarães sobre Riocorrente, “trata-se de um filme de idéias, e as idéias que o filme busca encenar são sempre anteriores – e exteriores – à sua existência fílmica”. Chegamos ao sintoma: não existe fruição ou construção sensível, mas um laconismo que é respondido pela doença-metáfora que se associa à condição patriarcal de soterramento de uma classe oprimida por sua família.

Mas se os meios não justificam os fins – aliás, mal conseguem se sustentar para alcançar a valente esperança que se encontra no nascimento de um novo filho (o plano final nos impõe a dúvida consoladora do novo como capaz de irromper qualquer cadeia genética virulenta) – existe ao menos um outro plano isolado no qual Graziosi alcança uma potência imprevista. Obra é primordialmente sobre uma arquitetura de escombros que empilha cadáveres. A epígrafe inicial desse texto, tirada d’O Fim de uma Era, poderia muito bem ser a sentença-síntese de todo o filme de Graziosi; poderia, especialmente, ser transfigurada em um só plano assombroso: o plano aberto da cidade de São Paulo que enquadra uma série de edifícios logo em seguida à morte do engenheiro (Julio Andrade). Esse plano, que em qualquer outro lugar da montagem poderia ser só um mastershot de ambientação, se transforma em algo acusatório e agregador, congregador de uma culpa que fere e mobiliza. Se sentimos mal, é porque devemos; se sentimos mal, é pra que mudemos. Um plano que não deixa de ser o contra-plano da morte. Se, por um lado, desde o começo, vemos a luta do protagonista em não deixar-se cair na rotina de uma cadeia hereditária maldita, neste instante de enfoque dos prédios tornamo-nos todos João Carlos Ribeiro de Almeida Neto, soterrando nosso passado num submundo que fazemos questão de não ver. A cidade de São Paulo precisa enxergar seu passado desolador para poder então dar o primeiro passo em direção à contra-mão de sua movimentação exponencialmente distorcida.

É uma pena que um filme com insights tão fortes como esse não consiga encadear seus tiros esporádicos. Toda a sujeira que Obra explora é feita de maneira límpida. No plano dos soterrados, aquela terra que deveria exalar cheiro de carniça transparece adubo. Não há pungência ou dor na longa cena em que ele, com a faixa abdominal, se veste; apenas a conformação do tédio (nossa/dele) pela angústia vagarosa da ação. A rigidez de um quadro que imobiliza com medo de espernear… mal sabe que a síndrome dessa doença que reflete o mundo estava na loucura insensata de Ahab. Carlos tem um problemão nas costas (literalmente também) e não consegue ser o denominador da mudança – o coito é interrompido pela morte do engenheiro e agora resta a fé no filho; sobra jogar ao futuro o que o presente é incapaz de transformar.

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