Jia Zhang-ke, um Homem de Fenyang, de Walter Salles (Brasil, 2014)

janeiro 25, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo, Em Cartaz

* Cobertura do 53o New York Film Festival

guyfromfenyang1
Seguindo o guia
por Elie Aufseesser (colaboração especial)

“A memória é um poeta, não um historiador” – Paul Geraldy

Pouco depois de Jia Zhang-ke ter apresentado seu mais recente filme, Mountains May Depart (2015), no NYFF, outro filme na programação assumia a tarefa de traçar uma genealogia de seu trabalho anterior. O homem por trás da empreitada é o brasileiro Walter Salles, amigo e admirador de Jia Zhang-ke. Filmar em terra estrangeira tem sido uma característica constante de vários de seus filmes – Portugal em Terra Estrangeira (1996); diferentes países na América Latina em Diários de Motocicleta (2004); os EUA em Água Negra (2005) e On the Road (2012) – e o último testemunho deste processo cruza a longa distância que separa estes dois países de grandes proporções geográficas, Brasil e China.

Além de compartilharem um mesmo trabalho e paixão, ambos os diretores vêm de lugares que estão se transformando em velocidade impressionante. Parece natural, portanto, que Salles tenha escolhido se concentrar na relação do cineasta chinês e de seus filmes com o seu entorno. A partir dessa escolha, o ritmo com que a paisagem urbana se transforma na Fenyang de Jia se faz imediatamente auto-evidente. Em Nova York, por exemplo, um turista pode fazer um tour do Sex in the City pela cidade e ver com os próprios olhos o canto de um parque one Carrie Bradshaw tropeçou uma noite e quebrou o salto de seu sapato. Se o mesmo turista quisesse fazer um tour pelas locações dos filmes de Jia Zhang-ke, não haveria muito a reconhecer.

A não ser que ele faça essa excursão cinematográfica. De fato, a idéia central do documentário é passear por cidades e regiões que o diretor chinês filmou, e registrá-lo falando sobre elas. Quando ele descreve uma cena que filmou no lugar onde eles calham de estar, a montagem dispara trechos tirado daquele filme, contrastando os dois diferentes momentos daquele mesmo espaço. Em uma cena, Salles mostra Jia caminhando sobre um palco abandonado ao ar livre, e em seguida corta para a cena que o cineasta filmou mais de uma década atrás, em Plataforma (2000), naquele mesmo teatro, quando ele de fato ainda era um. O efeito é acachapante e encarna a profissão de fé que Jia Zhang-ke confidencia no momento emocionalmente mais forte do filme, quando ele fala das lembranças de seu falecido pai. A questão da memória e do estado transitório das grandes cidades (e da própria vida) se choca com a permanência dos filmes; a questão do gesto artístico se choca com a censura; a questão da narrativa política de um estado se choca com o relato em primeira pessoa.

Todos esses elementos estão muito presentes nos filmes de Jia Zhang-ke, mas o documentário de Walter Salles parece se contentar em apenas catalogar esses temas. A natureza repetitiva do procedimento serve a causa simples e com resultados não raro interessantes, mas também não é capaz de colocar em perspectiva ou diálogo as abordagens bastante distintas que os dois cineastas fazem do cinema. Salles entrega o volante do ônibus de excursão ao próprio Jia Zhang-ke, que por sua vez não se sabe responsável pela condução. Invariavelmente, surge a dúvida de quem é de fato o guia do filme. O gesto tem sua justeza, mas na maior parte não rende momentos de cinema mais especiais, ou a envergadura emocional e intelectual que naturalmente se espera do encontro de dois cineastas de renome. Mesmo uma situação concreta onde se fala sobre cinema (quando o homem de Fenyang visita a escola de cinema de Beijing) não é expandida ou tratada como mais do que um momento prosaico na vida de Jia Zhang-ke (situação que um documentarista como Frederick Wiseman tipicamente amplificaria). A impressão é de que a chance de explorar uma memória coletiva a partir do diretor, como ele faz em seus filmes, é posta a perder.

A seleção cuidadosa de clipes que compõe boa parte de Jia Zhang-ke, um Homem de Fenyang é capaz de convencer espectadores ainda pouco familiarizados com os filmes de Jia Zhang-ke a querer ver mais; seus fãs, por outro lado, serão constantemente lembrados da riqueza de seus filmes. Mas o espectador à espera de um belo momento de cinema precisará esperar até o finalzinho do filme: a câmera de Salles testemunha seu amigo ouvindo a notícia de que seu então mais recente filme, A Touch of Sin (2013), havia acabado de ser censurado pelas autoridades chinesas. Naquele momento de incerteza, Jia Zhang-ke contempla a possibilidade de nunca mais filmar. Somos confrontados com uma situação que é fruto real do acaso, conduzida com bastante cuidado, e que efetiva o deseja dos cineastas e do filme, ao mesmo tempo em que ecoa as lembranças de Jia sobre seu pai e como sua vida tinha sido afetada pelo regime. Por alguns minutos, enquanto o filme escorre para a cena final (encerrando em nota otimista), há um corte para o negro, em solidariedade a esta luta, ao mesmo tempo em que se nega a mostrar as imagens que se encaixam à conversa que soa na banda sonora. É esta capacidade de criar uma simbiose poética entre objeto e sujeito que o filme mostra em seu epílogo que parece ausente no restante da projeção, e sua presença nos minutos finais apenas amplifica o lamento de que, em Jia Zhang-ke, Um Homem de Fenyang, Walter Salles tenha confiado demais que suas imagens fossem historiadores, em vez de poetas.

Share Button