Doce Amianto, de Guto Parente e Uirá dos Reis (Brasil, 2013)
dezembro 4, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Do Arquivo, Em Campo, Em Cartaz, Raul Arthuso
* Originalmente publicado em Janeiro de 2013.
Esse canto torto feito faca
por Raul Arthuso
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor
É perceptível nos filmes solo de Guto Parente uma inquietação em relação às potências plásticas da imagem cinematográfica e a manipulação das cores, da imanência/permanência da luz no quadro, a intervenção direta nos elementos do plano pelo efeito especial. Assim, se há um desajeito dessas potências quando do corpo-a-corpo com filmes como Flash Happy Society (2009) e Dizem que os Cães Vêem Coisas (2012), é relevante saber que Doce Amianto nasce de um encontro com uma história que parte do co-diretor Uirá dos Reis para entender a força que essas potências alcançam aqui.
Amianto é uma mulher passando por um momento de rejeição de seu grande amor, atormentada pela solidão e a profunda tristeza de ter uma série de sonhos, desejos, anseios abortados. A epígrafe do filme, poema de Walt Whitman, afirma a condição de uma rejeição ao mesmo tempo em que reforça a vontade de pertencimento. Que a protagonista seja interpretada por um homem deixa transparente uma idéia essencial aqui: a transformação. Em Doce Amianto convivem masculino e feminino, dor e humor, dureza e carinho, o poético e o vulgar e muitas das gradações compreendidas no entrecho. É na concretude da não-classificação da protagonista que o filme encontra seu princípio. Trans-formação. O transitório, mutável, plástico num mundo de pré-concepções.
A própria construção do filme por Uirá e Parente se dá como uma série de sinais e gêneros cinematográficos: a multiplicidade de materiais e texturas da imagem, uma certa instabilidade de sonoridades e uma economia de moods que não se furta a uma série de excessos e rasgos estéticos que passam reiteradamente pelo artifício. Se há, por toda sua artificialidade e a tendência ao bizarro, uma possibilidade de aproximação com o cinema de David Lynch, ela apenas se concretiza no espelhamento das transitoriedade dos climas e registros estéticos do filme com os tormentos da personagem – o pesadelo íntimo da personagem se manifesta no acerto climático das cenas.
Então, mais que Lynch ou Almodóvar ou João Pedro Rodrigues, ou qualquer aproximação fetichista com vestígios estéticos latentes no filme a outros diretores que estabeleceram suas marcas autorais pelo surrealismo sombrio (no caso lynchiano) ou pela reutilização do imagináriokitsch e do melodrama (no caso almodovariano), Doce Amianto é uma peça impregnada do espírito da música brega – elemento presente em diversos momentos da trilha musical do filme – em que as mediações formais são reduzidas até restar apenas o excesso rasgado dos sentimentos do eu-lírico. Uma imagem ecoa do início para o resto do filme pelo resumo que traz dos termos do jogo: após tomar um pé-na-bunda, Amianto cai no chão e, literalmente, jogada na lama, chora num plano próximo, longo, que não economiza na sentimentalidade.
Fundamentalmente essa é singularidade de Doce Amianto dentro do espectro dos pares da geração de Parente e Uirá: o desejo de um espelhamento completo narrativa-personagem como expressão de suas sensações e sentimentos; um desejo tão fervoroso de ir até eles que se entranha nas frestas de cada imagem.
Os excessos que já se encontravam mais claramente em Dizem que os Cães Vêem Coisas – e voltamos então ao início da apreciação do filme – encontram em Doce Amianto um terreno fértil exatamente porque naturalizado na narrativa. O desajeito que não apenas Guto Parente, mas os últimos filmes da Alumbramento (Não Estamos Sonhando, Retratos de uma Paisagem e o próprio Dizem que os Cães…) têm demonstrado ao tentar lidar mais diretamente com uma concretude das coisas, vem à frente e vira ferramenta narrativa. Doce Amianto é em si também um gesto de “precisar mudar o mundo”, como diz a narração de Amianto no final do filme. Uma intenção repleta de desajeito, desaforo, violência e auto-imolação, mas também uma profunda tristeza por ter de abandoná-lo. Doce Amianto aponta também, a partir dessa trajetória da personagem, um desejo de andar por caminhos diferentes daqueles sobre o qual o cinema brasileiro de ficção, em vários casos, tem transitado nessa última virada de década.
Assim, todo o artifício passa por emular essa série de sensações e contextos para achar a alertada singularidade do poema inicial. É “preciso mudar o mundo” – o realista, para um não-naturalista, exótico, exarcebado, excessivo, transmutação do concreto com o lírico, um mundo em primeira pessoa (“voilà mon couer”, na segunda cartela do filme). Um mundo singular para uma personagem singular. O artifício é a ferramenta de Uirá e Parente em busca de uma imagem singular que dê conta de todas as forças que perpassam personagem e filme, uma imagem síntese contemplando sensibilidades masculina e feminina, o lado cômico do excesso sentimental misturado à sua profunda tragédia, um humor negro que evoca a gravidade do mundo – e, nesse sentido, o intermezzo contando como Blanche, a fada-madrinha de Amianto, morreu é um achado.
A imagem-síntese do efeito especial, da encenação sobre chroma key, as manipulações de correção de cor da imagem: pôr em cena elementos diversos e estranhos entre si, mas latentes de serem formulados em conjunto num mundo além das classificações. Pois, Doce Amianto certamente será tomado como um filme gay, quando na verdade sua dimensão política é a de ser um filme trans – a tentativa de lidar com significações que perpassam as mudanças em relação ao masculino e o feminino pontuando que esses sentidos são sociais, portanto transitórios, efêmeros e ultrapassáveis; e não apenas eles, mas também noções próprias do cinema como gênero, arte, sofisticação, contemporaneidade. Um mundo de transformação cujo sentimento pode ser apreciado indo direto ao olhar sobre casos singulares, coisas singulares.
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