Carta aberta ao cineasta Murilo Salles acerca do texto “Crítica às cegas”

maio 5, 2014 em Cinema brasileiro, Em Campo, Victor Guimarães

por Victor Guimarães

Caro Murilo Salles,

Não o conheço pessoalmente, mas gostaria de me dirigir a você de maneira direta. Como se trata de um debate em que ambos estamos implicados, acho mais honesto proceder assim. Antes de qualquer coisa, gostaria de dizer que considero o exercício da crítica como algo de extrema importância, e não apenas no que diz respeito aos filmes. Assim como sou radicalmente contra qualquer blindagem de filmes, acredito que os textos críticos também devem estar sempre abertos ao questionamento e ao debate, inclusive por parte dos realizadores. Nesse sentido, considero saudável e democrática sua iniciativa de responder ao meu texto, Curtição do avacalho, sobre o filme Passarinho lá de Nova Iorque.

No entanto, não comentarei ponto por ponto sua crítica ao meu texto, por acreditar que se trata de um exercício fadado à tautologia e ao fracasso. O texto está escrito e publicado e, assim como o seu filme, permite diferentes leituras. A sua é uma delas, assim como a minha leitura do filme é uma – entre outras, possíveis. Acredito que o leitor da Cinética (especialmente o leitor que assistiu ao filme, que é nosso interlocutor principal) é perfeitamente capaz de julgar criticamente ambos os textos e formular suas próprias conclusões sobre o debate. Por isso, adicionar uma terceira camada de justificação me parece algo redundante e desnecessário.

Essa recusa ao comentário ponto a ponto se baseia ainda em duas outras razões. Por um lado, não alimento nenhuma ilusão de deter alguma verdade absoluta sobre o filme. Acredito que a assinatura do texto faz parte de um pacto inevitável com o leitor, que sabe que aquele filme foi visto por alguém – que, por sua vez, buscou materializar sua experiência e sua avaliação em um texto (com o qual se concorda ou discorda). Por outro lado, embora não tenha tido a oportunidade de rever o filme, continuo mantendo, em linhas gerais, a mesma avaliação que construí à época que vi Passarinho lá de Nova Iorque em Tiradentes. Seu texto me trouxe uma série de informações interessantes sobre o projeto, mas estas não alteram de maneira substancial a posição que eu defendia (e ainda defendo) diante do filme que vi. Sendo assim, por seguir considerando minha leitura válida, não vejo motivos para rediscutir todos os pontos do texto. Caso o leitor se interesse, basta comparar o filme, o texto original e a sua leitura dele. Tenho certeza de que esse exercício será o bastante para formular um julgamento sobre este debate.  

Eu gostaria, no entanto, de fazer alguns esclarecimentos – de cunho mais geral – que me parecem importantes. Em primeiro lugar, sobre a sua acusação de que o texto seria guiado por uma percepção “preconceituosa” e “pré-concebida” do filme. Não tenho absolutamente nenhum motivo para ter preconceitos ou pré-concepções em relação a Passarinho lá de Nova Iorque. Sou um admirador de sua trajetória como fotógrafo, vi poucos de seus filmes anteriores como diretor e minha avaliação sobre eles é bastante heterogênea. Decididamente, portanto, você não é um realizador pelo qual eu nutra algum desgosto prévio à apreciação de um novo filme. Também não tenho nenhum preconceito em relação à premissa do filme (que eu considero potente, como escrevi) ou a seus métodos. Meu julgamento crítico é inevitavelmente informado por toda minha experiência cinéfila e intelectual pregressa (acredito que a função do crítico é também a de tecer relações e ampliar a experiência de um filme), mas tem como fundamento primeira a matéria expressiva de Passarinho lá de Nova Iorque, a articulação formal do filme acabado que se ofereceu aos meus olhos e ouvidos. O texto que escrevi parte do filme que vi, projetado na tela do Cine Tenda, e de nada mais. Se o texto é raivoso – e ele certamente o é –, trata-se de um sentimento de desagrado construído inteiramente na experiência do filme, e não por qualquer elemento prévio. Acredito que nossa experiência do cinema se dá, inevitavelmente, sob a forma de afetos, e que a crítica é um exercício atravessado pela paixão. Se não excluo do meu exercício crítico as paixões alegres, por que haveria de excluir as paixões tristes? O desagrado me parece uma paixão tão relevante quanto a alegria na avaliação crítica de um filme.

Ainda no início do texto de resposta, você define minha crítica da seguinte maneira: “Estamos diante de, muito mais, um ‘julgamento moral’ do que uma crítica”. E acrescenta, logo em seguida: “O crítico que não enxerga, não pensa”. Ignoremos a sua avaliação sobre a qualidade da minha visão ou sobre a minha capacidade de pensar, e nos concentremos no que importa: a relação entre crítica e moral levantada aqui. Por um lado, concordo inteiramente com sua definição do meu texto como um “julgamento moral”. Por outro, discordo de sua avaliação de que, por ser um julgamento moral, não se trataria de uma crítica, e que optar por um caminho em detrimento do outro equivaleria à cegueira. Peço licença a você (e ao leitor) para me deter um pouco sobre esse tema. Sei que corro o risco do didatismo, mas acredito que, neste caso, ele é importante.

Acredito fortemente que a crítica de cinema é um exercício de julgamento tanto estético quanto moral, de forma indissociável. E acredito nisso porque, apesar de não me filiar a nenhum dogma teórico, carrego comigo algumas definições que são fundamentais para a minha existência enquanto crítico de cinema (e das quais não estou disposto a abrir mão). Uma delas é essa: os gestos de cinema são, sim, questões de moral. A história dessa ideia na tradição crítica é conhecida, e remonta a um texto de André Bazin (Como se pode ser hitchcock-hawksiano?, de 1955) em que ele define a importância da mise en scène para os “jovens turcos” da revista Cahiers du Cinéma da seguinte maneira: “Se eles têm em tão alta conta a mise en scène, é porque, em grande medida, são capazes de enxergar ali muito da própria matéria do filme, uma organização dos seres e das coisas que tem sentido em si mesma, quero dizer tanto moral quanto estético”. Nos anos subsequentes, essa indissociabilidade entre o sentido estético e o sentido moral da mise en scène seria retomada por Luc Moullet (“A moral é uma questão de travellings”, em texto sobre Samuel Fuller publicado em 1959) e por Jean-Luc Godard (“Os travellings são uma questão de moral”, em mesa redonda sobre Hiroshima Mon Amour no mesmo ano), até encontrar sua definição mais acabada em “Da abjeção” (1961), célebre texto de Jacques Rivette sobre Kapò (Gillo Pontecorvo, 1959). Nesse texto, motivado pelo sentimento de profundo desagrado em relação a um travelling realizado por Pontecorvo (“esse homem só merece o mais profundo desprezo”), Rivette elabora uma frase que guardo comigo já há algum tempo: “Fazer um filme é mostrar certas coisas, mas é, ao mesmo tempo, e mediante a mesma operação, mostrá-las desde certo ângulo, sendo essas duas ações rigorosamente indissociáveis”. Moral e estética são coisas indissociáveis porque a encenação, os movimentos de câmera, a montagem materializam um sentido moral no mesmo movimento em que constituem um gesto estético. Acredito que uma das funções essenciais da crítica é investigar a fundo esse liame e colocá-lo sob juízo, uma vez que essa relação nem sempre é óbvia. Aliás, muito do que me incomoda na crítica brasileira hoje diz respeito a um espírito de condescendência bastante hegemônico, que se materializa em uma recusa a se posicionar diante do que é moralmente inaceitável, mesmo quando isso está diante de nossos olhos e ouvidos.

Nesse sentido, sim, minha crítica é um julgamento moral, ao mesmo tempo em que é um julgamento estético. Todo o movimento do texto consiste em tentar traçar essa relação entre as escolhas do filme e seu sentido moral. Em certo momento de sua resposta, você diz o seguinte: “O ‘universo’ filmado é o universo do Cícero, são suas escolhas, é ele – em sua ação – que é o nosso narrador. Nos cabe ter um olhar delicado e atento sobre esse universo, e que, ao que parece, pela crítica, ela não percebeu essa intenção”. Acredito que esse trecho é bastante elucidativo do ponto em que o nosso dissenso sobre o que é o cinema e o que é a crítica torna-se inconciliável. Não, não é o Cícero quem narra. Não são suas as escolhas. Cícero é um personagem inserido em uma dramaturgia, construído por uma montagem. Eu não julgo as escolhas de Cícero, mas as escolhas de Passarinho lá de Nova Iorque (que são, por conseguinte, as escolhas de Murilo Salles). Se eu tivesse a chance de ver Flor de Abril ou Dê uma Xanxa ao Amor, poderia julgar as escolhas de Cícero como cineasta. Como não é o caso, julgo as do filme que se oferece a mim. 

Do mesmo modo, não acredito que o exercício da crítica consista em perceber a intenção do autor de um filme e muito menos de segui-la, pois filmes não se fazem com ideias, mas com imagens, sons, planos, cortes. Acredito que a intenção não pode ser parâmetro para o julgamento crítico por vários motivos: porque ela me é inacessível (não sei – e não me importa – se um cineasta faz um filme por desejo ou por inércia, por necessidade ou por diletantismo); porque, naturalmente, intenção é uma coisa, filme é outra (no sentido mais corriqueiro da oposição entre projeto e realização); e, principalmente, porque o que está disponível para o espectador não são intenções, mas um filme, com suas escolhas materializadas em imagens e sons. O sentido do qual nos falava Rivette não se traduz em intenções (Pontecorvo era um cineasta muito bem intencionado, diga-se de passagem), mas em um travelling. Assim como o julgamento moral e estético que faço de Passarinho lá de Nova Iorque não toma como base o projeto ou as intenções de seu autor, mas as escolhas de encenação, de montagem, de dramaturgia que enxergo no filme. De boas intenções o cinema e a televisão brasileiros estão cheios, tenho certeza disso. Mas a matéria de meu trabalho são os filmes.

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