Passarinho lá de Nova Iorque, de Murilo Salles (Brasil, 2013)

janeiro 28, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

passarinho

Curtição do avacalho
por Victor Guimarães

Sua liberdade / leve na sua mala”

Asas Livres

À primeira vista, Passarinho lá de Nova Iorque continua um antigo projeto de Murilo Salles de investigar a identidade brasileira a partir de alguns de seus artistas (“És tu Brasil II”, título expresso em cartela que abre o filme, carrega justamente esse ímpeto revelatório de um país invisível). Da safra mais recente, o filme forma um díptico com Aprendi a Jogar com Você: o universo narrativo é bem semelhante (como o DJ Duda, o cineasta Cícero Filho é um artista desconhecido, em plena tentativa de sobreviver em um ambiente hostil, que se vale dos mais variados expedientes informais em sua peleja diária) e os procedimentos são basicamente os mesmos: observação atenta do cotidiano entre a casa e a rua, foco nas relações familiares e de trabalho, pouca intervenção verbal perceptível no plano.

Os primeiros instantes nos indicam o mundo ao qual o filme irá se dedicar: Cícero vive em Poção de Pedras, no Maranhão, e produz – com ajuda da família e dos amigos, de forma mambembe, na raça, do jeito que der – comédias e dramas com sotaque regionalista, que exibe depois em escolas e outros espaços. Ele não partilha, contudo, de nenhum ideário burguês da arte como bem separado do mercado: cobra ingresso dos alunos para financiar o próximo filme, vende os DVDs a quinze reais, quer viver de seu cinema e ganhar algum dinheiro, se possível (e como não é, tem de se desdobrar em outras profissões – de cinegrafista freelancer da campanha eleitoral local a vendedor de côco). Como o DJ Duda, como Milka Reis, ele é um artista, mas é também um dos inúmeros “batalhadores brasileiros” – para usar a expressão do sociólogo Jessé Souza – que buscam ascender socialmente a partir do trabalho árduo e da constituição de redes informais.

No entanto, a partir de uma premissa potente – um cineasta burguês filmando um cineasta de outra classe social –, o que o filme produz não é uma investigação; não é o olhar de um cineasta que se sobrepõe ao de outro para melhor conhecê-lo. E isso por um motivo que se materializa desde o primeiro plano: para Passarinho lá de Nova Iorque, Cícero não é um cineasta, não é um artista. Durante todo o filme, só o que interessa do cinema de Cícero é aquilo que o circunda e que pode constituir, aos olhos burgueses, matéria pitoresca, motivo do riso mais fácil. Das reações passionais da família à telenovela aos ensaios para os filmes, dos telefonemas às tentativas de fotografar a atriz em cima de uma cerca de curral, o que interessa não é se aproximar de uma outra lógica de produção ou de uma outra estética para revelar sua complexidade, mas apenas extrair o máximo de exotismo possível. Em um dos ensaios, é preciso filmar Cícero em campo, dizendo um texto, só para depois revelar um contracampo que traz uma senhora com um pano na cabeça, em uma piada de montagem aviltante, de tão banal.

Há uma outra maneira de pensar o cinema em jogo, mas não chegamos a conhecer suas linhas de força, tamanha a incompatibilidade entre os filmes que vemos ser feitos em cena e aquele que vemos se desenrolar, plano a plano, na tela. Se os filmes de Cícero parecem se pautar pela busca da verossimilhança – como demonstra seu estilo de direção de atores –, tudo o que Passarinho lá de Nova Iorque conseguirá fazer é desarmá-la, desnaturalizá-la, revelar seu artifício da forma mais convencional. O cinema de Murilo Salles tem tanta certeza sobre o que é o cinema de Cícero Filho que não precisa oferecer ao espectador um plano sequer de Dê uma Xanxa ao Amor ou Flor De Abril. Interessa o detalhe do rebatedor improvisado, a câmera com defeito, os bastidores mambembes, mas tudo o que poderia revelar a fabricação de um filme – um filme certamente diferente dos “nossos”, certamente diferente do de Murilo, mas ainda um filme – é eclipsado pela viseira sobre os olhos que só enxergam o que não é o cinema. Nesse sentido, a escolha pela observação distanciada e pela transparência quase total operam como escudo e membrana impermeável: para melhor se deliciar com o ridículo dos microfones do outro, é imperativo nunca deixar aparecer o próprio boom. Para melhor curtir o avacalho do outro, é necessário não avacalhar nunca.

E se o filme refaz um trajeto mil vezes traçado pelo documentário brasileiro – ir até os rincões do país em busca de um personagem extraordinário –, sua bússola é a mais previsível de todas: é preciso destacar, em planos curtos, a precariedade do ônibus, a rede sobre a cama. Não é possível filmar a entrada da casa em um dia de sol como um plano de passagem com função narrativa: é preciso destacar justo o momento em que um jegue atravessa o quadro (ainda que – como todos sabemos – os jegues estejam em extinção). O olhar de Passarinho lá de Nova Iorque será sempre o de um turista que passeia brevemente pelo mundo do outro, e carrega todas as certezas pré-fabricadas – e nenhuma liberdade – na mala.

Nesse sentido, uma das escolhas mais significativas é justamente a de sobrepor uma trilha musical importada do cinemão hollywoodiano às peregrinações do protagonista em busca dos meios para fazer cinema e para sobreviver: não basta filmar o vai e vem de Cícero; é preciso acrescentar-lhe um envelope sonoro de melodrama, de comédia, de épico de aventuras estadunidense, pois sua vida não é aventuresca o suficiente. O filme é tão imune ao protagonista que não consegue sequer enxergar que seu projeto estético – nos raros momentos em que adivinhamos algo dele – é marcado por uma recusa radical ao que vem de fora: Cícero recusa os sons dos “passarinhos de Nova Iorque” sugeridos pelo finalizador e parte em busca dos passarinhos maranhenses no campo; insiste em encomendar uma canção especialmente pensada para seu filme (que parece muito bonita, mas que não podemos nem sonhar em ouvir inteira), pois, para ele, é disso que se trata.

E se fazer cinema consiste em descobrir onde é que jaz um sorriso em um plano – para retomar o mote do belíssimo filme de Pedro Costa com Straub e Huillet, certamente a maior antítese possível do filme de Salles –, Passarinho lá de Nova Iorque será a negação absoluta desse encontro com a alteridade que se materializa na imagem. Na melhor sequência do filme (que, por ser tão singular, funciona como testemunha do fracasso de todo o resto), há uma briga no set de filmagem, que finalmente se parece com um (e não com uma versão rocambolesca do quadro “Se vira nos 30” do Domingão do Faustão). Após repetidas tentativas, a atriz exaurida se recusa a se entregar novamente ao papel, pois não consegue mais se concentrar e precisa poupar a voz para o outro emprego como cantora. Quando a equipe finalmente a convence a tentar uma última vez, surge um belíssimo plano: Cícero, câmera na mão, chora e balbucia as próximas palavras do roteiro, em uma torcida silenciosa e desesperada para que ela consiga terminar bem a cena. É a constatação das forças em jogo: do lado de lá, em cena, a busca pelo melhor take – que é, também, a busca pela sobrevivência financeira – é animada por uma paixão renitente, que ainda resiste a despeito de todas as tentativas de transformá-la em algo menor; do lado de cá, no antecampo que a montagem constitui, há apenas eficiência. 

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