Carta aberta do cineasta Murilo Salles em resposta à crítica ao filme “Passarinho Lá de Nova Iorque”

maio 5, 2014 em Cinema brasileiro, Em Campo

Crítica cega
por Murilo Salles

Nunca escrevi sobre críticas a meus filmes, mas a de Victor Guimarães, Curtição do avacalho, sobre o nosso documentário Passarinho lá de Nova Iorque, publicada na Cinética por ocasião da Mostra de Cinema de Tiradentes, acabou me obrigando a isso.

O texto do Victor é guiado por uma percepção tão preconceituosa, que parece pré-concebida, pois não consegue sequer descrever com exatidão o que se passa na tela, portanto, é um texto incapaz de criar um diálogo sensível com o filme. Estamos diante de, muito mais, um ‘julgamento moral’ do que uma crítica.

O crítico que não enxerga, não pensa.

De início, ele mostra uma má compreensão do nosso projeto És tu, Brasil 2, e fica claro sua intenção em tornar pejorativo o fato de serem dois filmes “com a mesma pegada”. Claro que são! ‘Passarinho lá de Nova Iorque’ e ‘Aprendi a jogar com você’ (exibido na Semana dos Realizadores) são filmes diversos do mesmo projeto: de como o ‘tu’ [o personagem] se vira para fazer o que faz. É um projeto que quer desvendar se existem sintomas singulares [de brasilidade] em nossos ritos produtivos. Os dois filmes são realizados à partir de ‘procedimentos’ que aprendemos com a tradição estabelecida por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Marilena Chaui,  Roberto DaMatta, entre outros. Olhar os ‘personagens’ na rua, no trabalho e em casa.  Isso é banalizado e ridicularizado como ‘falta de originalidade’, quando a questão não é originalidade, é procedimento.

Os filmes em nenhum momento se propõem originais, pois essa é uma segunda série, onde escolhemos um universo de artistas mais populares para trabalhar. Isso propiciou um adensamento temático mais agudo. Foi o nosso objetivo. Para perceber como se ‘viram’ de formas absolutamente singulares os nossos personagens. Esse é o tema, a viração como um procedimento na raiz de uma experiência muito brasileira pela sobrevivência.

Ao fazermos as pesquisas para o Projeto, encontramos esses dois ‘personagens’ especiais: emblemáticos e carismáticos. No primeiro, Aprendi a Jogar com Você, sobre o DJ Duda e sua esposa a cantora Milka Reis, trata-se de um mergulho nas ‘traquitanagens (*) de sobrevivência’, para perceber como a instância do econômico interfere na vida afetiva das pessoas. Já o filme em questão, Passarinho lá de Nova Iorque, nos faz aprender como o cineasta Cícero Filho funciona a partir do afeto, da sedução, da alegria e do comprometimento abnegado ao que faz.

O crítico sabe que fizemos um filme sobre viração. Mas o marco fundamental de seu questionamento é que a não presença de imagens do filme do Cícero, trata-se de um julgamento moral nosso.

Nunca, em momento algum em nosso filme propomos discutir ou pensar qual o tipo de cinema Cícero está fazendo ou sobre o que é o seu filme, simplesmente porque esse não é o nosso tema.

Mas, passando à crítica, podemos distinguir melhor quem é que está fazendo julgamento moral.

A primeira explicitação da não percepção do filme por parte do crítico, é quando ele afirma que Cícero vive em Poção de Pedras, no Maranhão. Esse é um ponto muito importante, pois é temático: Cícero não “mora de lugar nenhum”. É um nômade. Se ele mora em algum lugar, é em Teresina, onde o filme chega em mais da sua metade. Onde ele não mora é em Poção de Pedras, casa de seus pais. Cícero recusa a morar e trabalhar com o pai [e irmãos] porque seu objetivo é terminar seu filme. Isso é dito em alto e claro som direto.

‘Passarinho de Nova Iorque’ começa em São Luiz, na casa de Dona Marina, e termina em São Luiz, na casa de Dona Marina. ‘Passarinho’ entra pelo portão da casa e percorre com Cícero sua jornada, voltando ao final para a mesma casa, saindo pela mesma porta que entrou, alçando vôo no imaginário. É um filme circular e desterritorializado.

Seguimos. O texto da crítica não se refere, em momento algum, à alegria de Cícero em fazer o que faz. Nunca vimos um ‘personagem’ se divertir tanto em cena. E, em seguida, o que descobrimos montando o filme? Sim, descobrimos, porque a função do cineasta é descobrir o que está latente no material. É o material que se impõe. Percebe-se que Cícero ‘constrói’ verdadeiras ‘famílias’ que o acolhem, e com seu jeitinho sedutor ele vai conseguindo fazer tudo o que quer.

E com o olhar atento, descobre-se que ‘famílias’ que Cícero constrói são ‘ficções’ de Cícero.

Na primeira família, onde o filme começa, em São Luiz, abrimos com uma cena de um casal arrumando a cama. Nessa cena a personagem Ione parece ser esposa de Cícero, mas na verdade ela não é. Parece porque é como Cícero conduz essa relação para a nossa ‘tela/câmera’,  com essa ambiguidade. A menina Alanna não é filha deles, e Dona Marina, é a mãe de Ione. Portanto, a primeira família que acolhe Cícero é uma ‘narrativa’ que não é nossa, é do Cícero. Quem constrói o filme é Cícero. Cabe a nós a sensibilidade para perceber como ele se impõe. E com isso, também construirmos a nossa ficção.

Em seguida, Cícero vai para o Rio de Janeiro. Outra família: a do albergue cor de rosa em Santa Tereza. Uma família ‘escondida’ nos quartos. Aqui é o lugar do fazer ‘secreto’ do cinema de Cícero. Cícero se diverte ao mesmo tempo é rigoroso. Constrói seu cinema – tal como vem sendo construído pelos cineastas mais criativos do cinema brasileiro – numa tradição ‘traquitaneira’ – fundada por Edgard Brasil e abraçada por Humberto Mauro.

Nosso crítico não se referiu a nenhum desses elementos temáticos que são a argamassa constitutiva do filme. Mas o que ele critica?

Em sua distorção perceptiva, o crítico desenvolve a tese que Cícero, um artista popular, é retratado por um insensível cineasta burguês. Mas, o que percebe-se no texto do crítico é sua piedade condescendente com Cícero: ‘que não consegue viver de seu trabalho criativo, então submete-se a trabalhar numa campanha eleitoral’… Cícero não trabalha em campanha eleitoral nenhuma. Ele faz uma ‘reportagem’ para promover um vereador ‘local’, por insistência do pai. Inclusive, está ‘injuriado‘ em ter que fazer essa matéria. E na gravação, fica ironizando o vereador. Na verdade, Cícero está irritado, porque quer ir embora de Poção de Pedras, pois sabe da determinação de seu pai para que fique trabalhando na TV Moarim, uma repetidora do SBT, o negócio da sua família.

O texto segue, dizendo que a premissa potente de ‘Passarinho’ é a de  um cineasta burguês filmando um cineasta de outra classe social (premissa potente?- confuso isso…), para depois dizer que, apesar disso, o olhar (do cineasta burguês) não está preocupado em ‘conhecer’ o outro cineasta, pois não reconhece-o o como um Cineasta, ou Artista. O olhar burguês (enfim se revela) se fixando apenas naquilo que circunda Cícero, que o torna pitoresco, motivo de riso fácil.

Se ‘Passarinho’ não reconhece Cícero como um Cineasta, reconhece-o como o quê? O ‘universo’ filmado é o universo do Cícero, são suas escolhas, é ele – em sua ação – que é o nosso narrador. Nos cabe ter um olhar delicado e atento sobre esse universo, e que, ao que parece, pela crítica, ela não percebeu essa intenção.

Cícero corre atrás de um certidão negativa para receber um patrocínio, exibe filme numa escola na sua busca por renda, vende seus DVDs a 15 reais, vai ao encontro de patrocinadores. Em todos esses eventos ele está compromissado com o seu fazer.

Depois de promover em sala de aula uma projeção se seu filme Dê uma Xanxa ao Amor na escola Raio de Sol, Cícero crítica a professora/atriz de Flor de Abril – [filme que está sendo realizado enquanto filmamos Passarinho] – porque riu durante uma cena dramática. É aqui que revela-se o desejo de Cícero em refilmar essa cena de seu filme. Mas, o que nos surpreende, é quando ele, de súbito, vira-se para a atendente disciplinar da escola, que está ao lado, e começa a ensaiar uma cena de ‘choro’. Esse é o cineasta Cícero Filho. Envolvendo tudo e todos com sua paixão. E divertindo-se. Nos divertimos também, porque ele se diverte.

Percebemos isso, em especial na relação dele com Dona Marina, nossa representante potiguara, filha das matas, que dorme, tal Macunaíma, numa rede sobre sua cama, quando Cícero brinca de fazer um outro “ensaio” com ela – e o crítico ‘detona’ – dizendo que ‘Passarinho’ numa operação banal de montagem de campo e contra campo ‘ridiculariza’ a senhora com um pano na cabeça, em uma piada de montagem aviltante. Será que o crítico não percebeu que Cícero e Dona Marina brincam nesse ensaio improvisado, e se divertem? Que o guardanapo na cabeça é figurino?

O crítico também não consegue enxergar que o expediente de vender cocos na praia e objetos ‘sexuais’ é um expediente da Ione, em que ela se arrisca para aumentar sua renda? E que, nesse caso, perdeu dinheiro. E se auto ironiza: ‘que derrota’!

Esses expedientes, além de serem necessários na vida de Ione, são parte da ‘jornada’ de Cícero em busca de seu desejo. Além do que o ‘fracasso’ de vendas de água de coco na praia é que gera em Cícero uma crise: seu patrocínio que não sai, e, mais importante, a sua insegurança com o próprio filme. Isso não é olhá-lo senão como um Diretor de Cinema?

‘Passarinho’ mostra Cícero vendo novelas três vezes durante o filme. Cícero se envolve com esse universo cultural. Ele é um diretor de filmes populares. Será que isso não é digno de um filme? Ou melhor: será que o cineasta burguês deve ocultar o fato de Cícero se envolver e vibrar com novelas, para não ser criticado por ter um olhar burguês sobre um artista popular? E devolvemos a pergunta para o crítico: qual o problema de Cícero gostar e vibrar com novelas? Quem no Brasil nunca vibrou?

O crítico continua: ‘Cícero se pauta pela verossimilhança – como demonstra seu estilo de direção de atores(Como assim?!) e que “Passarinho” faz é desarmá-la, desnaturalizá-la’, portanto, ‘denuncia’ o nosso interesse em ficar filmando rebatedores improvisados! Será que o crítico nunca foi a uma filmagem do ‘cinemão burguês’ e viu rebatedores de isopor improvisados?

Chega a ser ridículo! O crítico toma banalidades como questões cinematográficas.

E segue: ‘o Cinema de Murilo Salles tem certeza sobre o que é o cinema de Cícero Filho, que não precisa oferecer ao espectador um plano sequer de  Dê uma Xanxa ao Amor ou Flor de Abril. Sim, o cineasta Murilo Salles conhece bastante o cinema de Cícero Filho. Assistimos a 3 filmes de Cícero. Quando começamos a filmar, ele estava finalizando Flor de Abril, portanto não foi possível assisti-lo, o que aconteceu durante a montagem. Mas qual é o ponto? Não estamos fazendo um juízo de valor sobre o cinema de Cícero Filho. Realizamos um documentário que olha para Cícero Filho e seus procedimentos, que sabíamos por pesquisa, serem muito singulares, originais. Olhamos um personagem extraordinário. Isso foi suficiente. Não inserimos nenhuma cena dos filmes do Cícero por uma questão de ordem temática, ética e estética.

A ‘crítica’ chega a tal ponto, que afirma: ‘para melhor se deliciar com o ridículo dos microfones dos outros (os microfones do Cícero), é imperativo nunca deixar aparecer o próprio boom. Para melhor curtir o avacalho do outro é necessário não avacalhar nunca.’ Esclarecendo: para podermos avacalhar os microfones que Cícero usa em suas filmagens, temos que esconder muito bem o nosso.

Isso chega a ser tragicamente cômico. Não aparece nenhum boom em nossa filmagem simplesmente porque não usamos boom. Usamos microfones de lapela, que estão a mostra o tempo todo no filme, inclusive, seus transmissores – que diz o manual, devem estar escondidos. Mas eles estão expostos e são manipulados pelos personagens no decorrer do filme: o montador Dalson Carvalho tira o seu ‘lapela’ em plena cena.  Ao contrário, o ‘boom’ de Cícero é o melhor que existe: um Sennheiser com abafador de vento.

Trágico, é usar tal argumentação de baixo calado para discutir um filme.

Seguem algumas outras ‘acusações’ tais como a de que ‘destacamos’ a ‘precariedade’ do ônibus, que montamos um jegue passando na frente de uma casa e por isso, ‘o olhar do filme é igual a de um turista: muitas certezas pré-fabricadas e nenhuma liberdade na mala’.

Bem, Sr. crítico, a nosso favor podemos dizer que pegamos o mesmo ônibus que o Cícero Filho, sua equipe e atores pegaram para ir de Teresina a Poção de Pedras. Montamos essa cena, porquê até no ônibus Cícero improvisa uma família… Da próxima vez, para não fazermos uma ‘imagem de turista’, vamos pedir para a produção alugar um ônibus de dois andares, desses incríveis, para registrarmos Cícero e sua equipe indo refilmar a cena que ele tanto deseja. Além disso, vamos mandar fechar a rua enquanto filmamos o plano geral da casa dos pais de Cícero, para impedir que um jegue (‘tão raro hoje em dia’ – na observação do crítico: porquê não, então, um bom motivo para incluí-lo?) atravesse o quadro, o que denuncia a nossa visão burguesa, distanciada e turística.

Depois disso, o crítico afirma que o filme é ‘imune ao protagonista por não conseguir enxergar o seu projeto estético’. Então, nos relata qual o projeto estético de Cícero: ‘a recusa radical do que vem de fora‘. Ele se recusa a usar sons de passarinhos de Nova Iorque, editado pelo montador. Portanto, para o crítico, essa é a ‘prova de nossa insensibilidade: não darmos a importância devida ao mundo criativo de Cícero; na sua recusa radical pelo que vem de fora.

Será que não ocorreu ao crítico intuir porque demos o nome “Passarinho lá de Nova Iorque” ao nosso filme? Porque será que montamos essa cena de Cícero ironizando o editor pelo uso de um som estrangeiro? Porque será que filmamos e montamos a linda cena dele indo gravar os passarinhos maranhenses?

Ainda somos acusados de mais insensibilidade por não usarmos a música que o compositor Joelmistockles fez para Flor de Abril. Mas ‘Passarinho lá de Nova Iorque’ termina com essa música, sobre seus créditos finais.

Para finalizar a afirmação bombástica: ‘Passarinho lá de Nova Iorque’ é a negação absoluta desse encontro com a alteridade que se materializa na imagem.

Quem se negou absolutamente a um encontro, foi o crítico com o filme. Ele não conseguiu perceber que o filme fala de afeto, de alegria, de sedução, de religiosidade, para chegar em Édipo.

Quem será que não enxergou a alteridade?

É uma arrogância achar que vamos perder 5 anos das nossas vidas fazendo um filme para ‘curtir um avacalho’. Será que o crítico acha que somos um bando de imbecis?

Esse filme foi feito por uma equipe pequena, mas muito apaixonada. O projeto foi inteiramente filmado por Leonardo Bittencourt. O Diretor, por procedimento, não foi ao set. Escolhemos e fomos escolhidos por Cícero, pois afinal, foi Cícero e suas ‘famílias’ que se dispuseram ao filme. Tratamos o material filmado como um arquivo de imagens a nos desafiar a sensibilidade. E construímos a nossa narrativa na montagem, com Eva Randolph. Muito trabalho abnegado. Alguns anos.

Quem parece ter ‘curtido um avacalho’ escrevendo esse texto foi o crítico. Não conseguiu enxergar o Passarinho. Perdeu.

O curral, Victor, para mim é uma metáfora-homenagem a Humberto Mauro, a quem posso homenagear, porque fiz um filme com ele, ainda garoto. Meu mestre. Para você, o curral é símbolo de nosso desprezo por Cícero. Pior para você, não?

Murilo Salles.

(*) Entendemos por traquitana uma invenção de adaptação (adaptativa) muito usada no Brasil. Inclusive na indústria. No cinema temos um exemplo ‘fundador de tradição’ no trabalho do fotógrafo Edgar Brasil em Limite, onde a invenção de traquitanas criativas para ‘driblar’ a indigência tecnológica ganha excelência, virando paradigma de uma vertente de fotógrafos, com exemplos históricos tais como o de ‘expor para a sombra’ de Luiz Carlos Barreto, em Vidas Secas; os procedimento fotográfico de Dib Luft (que destelhava parte de uma casa para iluminar seu interior); o conceito da ‘fotografia jornalística’ que Waldemar Lima e José Medeiros trouxeram com excelência para o cinema. Inclusive, deixamos registrado que o título ‘traquitana’ com ‘forma criativa’ é do Artista plástico e cineasta Cao Guimarães.

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