Aprendi a Jogar com Você, de Murilo Salles (2013, Brasil)

julho 26, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

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Fora de campo
por Marcelo Miranda

Em dois momentos de Aprendi a Jogar com Você, DJ Duda, personagem documentado por Murilo Salles, conversa diretamente com quem empunha a câmera. Num primeiro instante, bem-humorado, ele revela a “estratégia” de culpar o guitarrista e dissolver sua banda musical caso não consiga fechar negócio com o contratante; em outro, ao volante, sugere que o filme sobre ele sendo feito ali, naquele instante, tenha um final feliz, “mesmo que não seja verdade”. Nas duas ocasiões, Aprendi a Jogar com Você deixa de lado o dispositivo da câmera invisível que a tudo observa supostamente sem interferir na ação registrada e deixa Duda “quebrar” a ilusão e se dirigir abertamente ao realizador do filme (e ao espectador que o vê no ato da projeção) para explicitar duas ideias que só podem acontecer no extracampo, fora da abordagem mais direta. Duda tanto fala fora da ação documentada (em conversas que não fazem parte de seu cotidiano, pois se dão para uma câmera) quanto esses depoimentos interferem na coesão do filme como construção naturalista das batalhas diárias do DJ e de sua esposa, a cantora e dançarina Milka Reis.

O destaque aqui para este dois momentos singulares se deve ao significado que eles possuem dentro da abordagem definida por Murilo Salles para dar a visão sobre Duda, Mikka e seu entorno. Porque Aprendi a Jogar com Você se apresenta como um apanhado de imagens in natura, no momento em que cada ato acontece, reunido para formar um grande relato. As operações do filme se dão também no extracampo, tanto quanto as ideias levantadas por Duda nos dois depoimentos destacados – e, assim como as estratégias do DJ de maquiar sua realidade (inventando alguma desculpa para dispensar os músicos da banda ou antecipar um desfecho ainda indefinido), as estratégias de direção e montagem de Aprendi a Jogar com Você igualmente lidam com trapaças de realização, no intuito de legitimar o filme como relato cru, “realista” e espontâneo do dia a dia daquele casal de artistas que tenta expandir suas criações, conseguir dinheiro e sustentar casa e filhos. Na maneira como se apresenta, porém, tudo que o filme não possui é espontaneidade.

Recentemente, o crítico Victor Guimarães apontou, aqui mesmo na Cinética, elementos problemáticos de Passarinho Lá de Nova Iorque, outro documentário de Murilo Salles, que dialoga diretamente com Aprendi a Jogar com Você (por se tratarem de frutos do mesmo projeto, “És Tu Brasil”). Alguns dos comentários do texto de Victor são encaixáveis aqui, em especial o de que o interesse do filme “não é se aproximar de uma outra lógica de produção ou de uma outra estética para revelar sua complexidade, mas apenas extrair o máximo de exotismo possível”. Continua patente, aqui, a visão generalista (e, por vezes, paternalista) sobre o ofício de um personagem e as maneiras várias de ele se livrar das adversidades. O carisma de figuras como Cícero (o cineasta de Passarinho Lá de Nova Iorque) e DJ Duda se torna moeda de troca para a adesão do público nas trajetórias de cada um deles, bastando que as imagens dos filmes captem o máximo possível aquilo que os tornaria pessoas “comuns” em situações e ambientes incomuns tanto ao criador (de outra classe social e naturalmente encantado pelas estripulias dos menos favorecidos) quanto a um público hoje mais e mais aburguesado. DJ Duda e Milka Reis se tornam, assim, chistes audiovisuais que, mesmo tratados com relativo carinho por esse olhar externo um tanto ingênuo e utópico, são, no fim das contas, apenas vampirizados pela mesma câmera que os registra continuamente.

A operação de tornar Duda e Milka personagens de mera exposição (e não personagens de si mesmos) é ainda mais evidenciada na forma como Aprendi a Jogar com Você articula seus blocos de imagem. No mesmo texto já citado, Victor Guimarães emula Jean-Marie Straub e Danièle Huillet ao lembrar, a partir de Onde Jaz o Teu Sorriso? (2001), de Pedro Costa, que “fazer cinema consiste em descobrir onde é que jaz um sorriso em um plano”. No filme de Murilo Salles, parece inexistir a preocupação em permitir que as imagens ganhem vida para além do mero registro. A preferência é por um pot-pourri situacional e ilustrativo que insiste em quebrar a continuidade dos planos justamente quando eles parecem estar se aproximando de alguma força maior. Quando não interessa ao filme mostrar algo, simplesmente não se mostra (o maior exemplo é a apresentação de Milka numa festa noturna: os preparativos ganham boa parte da projeção mas, na noite em questão, prefere-se acompanhar as conversas do casal dentro do carro enquanto discutem dinheiro).

Assim como em Passarinho Lá de Nova Iorque, há um momento em Aprendi a Jogar com Você no qual o personagem ganha contornos quase independentes à sua utilização funcional. É quando, já no fim, Duda telefona para alguém que lhe deve dinheiro e passa um pito colossal, pondo para fora toda a frustração de quem trabalhou sem ser recompensado. É sintomático, logo em seguida, que a cena se revele uma encenação do próprio Duda: seu único momento de verdade (para o filme) é um momento de mentira (para o personagem). Neste momento, quase dá para ouvir alguma voz over vinda de fora do filme, de uma instância imaginária da realização, de além da visão dimensional da tela, a sussurrar para Duda: “aprendi a jogar com você”.

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