A Cidade do Futuro, de Cláudio Marques e Marília Hughes (Brasil, 2016)

setembro 1, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

* Cobertura do 5o Olhar de Cinema

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Dramaturgia da norma
por Victor Guimarães

Seria possível, não com muita dificuldade, determinar com exatidão a função precisa de cada um dos planos de A Cidade do Futuro. Cada bloco de imagem-movimento funciona como uma peça a mais de uma engrenagem narrativa cerrada, que não admite desvios e se move – ou melhor, se desenvolve – como se preenchesse os espaços em branco de um protocolo a cumprir. A montagem é responsável por administrar o preenchimento: assim que a informação contida no plano se esgota, é hora de cortar e passar ao seguinte. Num filme preocupado em dar a ver um processo de liberação, em questionar rótulos e em se aproximar de vivências desviantes, chega a ser impressionante o modo como a dramaturgia e a mise-en-scène trabalham incansavelmente no interior de uma norma estrita, facilmente rotulável e marcadamente hegemônica.

Milla, Gilmar e Igor são jovens de Serra do Ramalho, sertão da Bahia, que buscam viver sua sexualidade em formas que escapam à norma heterossexual e monogâmica. Quando Milla fica grávida de Gilmar – que também ama Igor –, os três decidem começar uma família, mas (como não poderia deixar de ser) vão enfrentar os preconceitos de uma sociedade conservadora. Paralelamente, o filme conjuga imagens de arquivo e depoimentos sobre a fundação da cidade, criada a partir da transferência das famílias atingidas pela barragem de Sobradinho nos anos 1970. Os dois fluxos narrativos se encaixam perfeitamente – não há estranhamento possível em A Cidade do Futuro – e há até uma justificação para tal: Gilmar é professor de história em uma escola, e é ele quem desata o veio documental do filme.

O arco dramático da superação das adversidades, da luta da novidade contra o atraso, é o mesmo que pode ser encontrado em uma miríade de narrativas audiovisuais contemporâneas, das séries da moda às telenovelas aos filmes de super-heróis. E assim como na maioria desses outros lugares, a pretensa novidade só atinge o terreno da intriga: do lado do cinema, o que sobra é uma forma padrão, com belas imagens, ações encadeadas, diálogos explicativos, ritmo funcional. Mesmo se um plano não tem função narrativa (como aquele em que Igor encontra um peixe em plena estrada de terra árida), sua função simbólica é facilmente identificável: vejam só, os peixes do São Francisco, a dar saltos no sertão.

Enquanto os intrépidos jovens enfrentam os preconceitos da comunidade local (uma demissão discriminatória na escola, uma mãe que não aceita a orientação sexual do filho), o filme coleciona clichês a cada plano: num deles, uma fila de moradores da cidade está sentada em frente a uma reprodução kitsch da Última Ceia; noutro, Igor entrega um currículo em uma loja da cidade, tão entulhada de manequins que não é possível ver por onde se entra. Se uma imagem ou uma frase não é explicada imediatamente, ela será mais tarde: a história do deslocamento das famílias só existe para que Gilmar diga a Milla, em mais um diálogo telenovelesco, que eles não podem fugir como seus pais o fizeram. A pergunta feita por Gilmar a Igor numa gruta no começo do filme (“Você tem medo?”) precisará ser repetida nos mesmos termos perto do final, para que o rapaz, enfim redimido após sobreviver a um espancamento, possa responder “Não tenho mais”.

Mas a funcionalidade de cada elemento do filme só é tão evidente devido a um aspecto fundamental: o trabalho dos atores. Ainda no início, Milla (responsável por dar aulas de teatro na escola) se dirige a uma aluna que diz um texto muito duro e a pede que encontre em si o sentimento para emprestar à personagem. O conselho stanislavskiano não poderia se aplicar mais ao trabalho do trio principal de A Cidade do Futuro: o texto clama por uma atuação naturalista, nuançada, emocional, mas a cada vez que uma palavra é dita, é como se uma página de roteiro estivesse sendo lida pela primeira vez. Até os gestos são escolares, como o ruidoso engolir em seco de Igor ao ouvir a canção dedicada a ele por Gilmar no rádio.

Os únicos momentos em que é possível sustentar a crença são justamente aqueles em que a ficção está mais distante, como nos depoimentos ou na cena em que Igor tenta vender serviços funerários para um casal de idosos. Sempre que é preciso construir mundo, gerar empatia, o gesto trava. E antes que se diga que a rigidez é consciente, é importante afirmar que não há nenhum indício que nos faça crer nisso. Um arco dramático tão linear obriga a uma progressão emocional equivalente, mas os atores terminam o filme da mesma maneira que começaram; uma narrativa tão previsível pede verossimilhança, mas há cenas em que o artifício grita; a única maneira de tornar vivos diálogos tão didáticos seria uma dicção empática, mas a direção de atores faz com que seja impossível acreditar em uma só palavra do que se diz. E como crer na família do futuro se não acreditamos nos atores do presente?

Quando escrevi aqui na Cinética sobre Depois da Chuva, o filme anterior de Cláudio Marques e Marília Hughes, durante o Festival de Brasília de 2013, fiz elogios rasgados ao filme, sobretudo à verossimilhança dos diálogos e das atuações. Quando revi o filme em Tiradentes no começo do ano seguinte, já restava muito pouco daquele sentimento inaugural, e a construção excessivamente didática da narrativa já me saltava aos olhos. De todo modo, ainda guardo de Depois da Chuva a lembrança de alguns traços formais poderosos, que pareciam produzir desvios em relação ao curso didático da narrativa, como o tratamento fotográfico das ruínas que abrigam a festa final ou as estranhas sequências musicais no casarão anarquista. Em A Cidade do Futuro, todo desvio possível está restrito ao desenho da trajetória dos personagens e foi empacotado por uma forma normalizante, disciplinadora. Só resta o discurso progressista, embalado para agradar quem já compartilha dele.

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