Depois da Chuva, de Cláudio Marques e Marília Hughes (Brasil, 2013)

setembro 22, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

depoisdachuva

Depois da derrota
por Victor Guimarães

Imagens televisivas – já combalidas pela ação do tempo – nos mostram um comício da campanha das Diretas Já, em 1984. A velha canção de Geraldo Vandré soa pela enésima vez, entre gritos de euforia. O plano seguinte nos transporta diretamente para uma reunião entre estudantes secundaristas de um colégio soteropolitano, que tentam decidir se aceitam ou não a proposta – feita pela direção da escola – de eleições indiretas para o grêmio. A câmera percorre os rostos em volta da mesa, percebe cada nuance das expressões adolescentes (entre a esperança e a dúvida). No fundo da sala, notamos um menino de cabelos desgrenhados, que assiste a tudo com uma sisuda feição de desagrado. “Votem nulo. E não me matem de tédio”, diz ele, encerrando a sequência. O enredo que acompanharemos a seguir é centrado na figura desse garoto, Caio (Pedro Maia), um jovem artista e ativista político que se move entre os conflitos com o conservadorismo da escola, a atuação em um pequeno grupo anarquista e o início de uma paixão vivida em companhia da colega Fernanda (Sophia Corral).

O recorte historiográfico e o universo ficcional de Depois da Chuva, por incrível que pareça a esta altura, tem algo de absolutamente singular. Se o cinema brasileiro filma à exaustão – quase sempre, muito mal – o romantismo político dos anos de chumbo ou as intrigas ambientadas na época da repressão, o olhar para o período imediatamente posterior ao fim da ditadura é raro. Mais rara ainda é a escolha por filmar justamente essa estranha sensação de ressaca de uma longa noite de bebedeira inexistente, as conseqüências – para uma juventude que crescia durante o regime e não viveu a militância – da espera interminável por um desfecho consentido pelos militares e assumido pelos políticos profissionais de ocasião. O fabuloso elenco do filme vive um grupo de jovens às margens da euforia televisiva reinante, na contramão de uma esperança – cada vez mais perceptivelmente fajuta – por uma transformação da sociedade pelas vias oficiais. Os personagens da canção profética de Belchior continuaram a viver como seus pais, mas também tiveram filhos – e são eles que ensaiam novos sonhos, vivem novas angústias.

Que um filme brasileiro recoloque em questão, de maneira tão frontal, a história e a identidade nacionais, é algo que surpreende e anima, sobretudo em tempos em que um gesto como esse parece tão mais urgente. Que esse filme venha das mãos de Marília Hughes e Cláudio Marques, dois realizadores com um vasto repertório de escolhas arrojadas, já sedimentadas em uma trajetória impecável no curta-metragem, é um dado que faz com que os anseios aumentem anda mais. Depois de tanta expectativa, a primeira surpresa estética vem logo após as primeiras sequências: Depois da Chuva não será um completo experimento, mas um filme de encenação realista, baseado em um roteiro fortemente narrativo, preocupado em construir um arco dramático claro e perceptível. O barroquismo explosivo de Nego Fugido cede lugar a um trabalho minucioso de construção dramatúrgica, no qual a verossimilhança dos diálogos e das atuações adquire um papel fundamental.

Fazer com que essa escolha não se transforme em capitulação diante de um padrão estético hegemônico será uma tarefa que o filme assumirá desde o primeiro plano. Nesse sentido, a filiação a um conjunto de realizadores que continuaram o gesto moderno, sem nunca abandonar o realismo – Cassavettes, Pialat, Assayas ou Garrel –, é mais do que bem-vinda, e produz no filme uma incansável busca por soluções de mise en scène que se reinventam a cada sequência. Uma cena nunca é um receptáculo para um estilo pré-definido e constante, mas um desafio que demanda, a cada vez, um pensamento diferente do espaço, um novo modo de posicionar os corpos. Do salto abrupto de Fernanda para o fora-de-campo – em um dos primeiros encontros do casal protagonista – ao travelling para trás que sintetiza a derrota do líder do grupo; do conjunto notável de planos-sequência de intensidade hipnótica à secura que a distância da câmera e a montagem imprimem a um momento decisivo do filme (que lembra A Fronteira da Alvorada, de Garrel), os dois diretores – com a ajuda de um dos melhores fotógrafos do mundo, o inesgotável Ivo Lopes Araújo – afirmam um estilo múltiplo e potente, que consegue equilibrar a plasticidade dos enquadramentos e uma atenção dedicada ao vigoroso trabalho do elenco. A escolha por filmar em 16mm contribui para que essa estética ganhe ainda mais força, em planos sempre abertos à respiração dos atores na cena.

O diálogo com a música também materializa essa combinação alquímica entre narratividade e experimentação: se o punk rock dos anos 1980 é o que embala as caminhadas de Caio e Fernanda pela cidade – e ajuda a contar essa história –, o filme também se abre para a integridade das performances regadas a música concreta no casarão anarquista, preservadas em sua potência autônoma. O mais absoluto controle sobre a encenação não impede que o improviso atravesse a cena, que uma força muito intensa dos corpos se sedimente em cada plano.       

Mas talvez o traço mais impressionante do filme resida em sua decisão de produzir um movimento francamente alegórico em um cenário cinematográfico tão hostil a esse tipo de iniciativa. Progressivamente, tanto a convocação das imagens de arquivo quanto o desenrolar da intriga não deixam dúvidas de que, se o filme reinterpreta – em chave atual – uma época bem específica (em uma ressignificação que transforma o otimismo da redemocratização em uma derrota profundamente melancólica), ele não deixa de remeter sempre a uma outra cena, de lançar um olhar decididamente crítico sobre o presente  do país. Se há, por vezes, um excesso de didatismo nessa relação entre tempos (como na sequência posterior à eleição da escola), há também uma enérgica aposta anacrônica – e, por isso, verdadeiramente contemporânea – em um gesto que parecia enterrado entre nós desde os filmes do cinema novo e do cinema marginal que autorizavam a célebre leitura alegórica de Ismail Xavier.

Na grandiosidade das ruínas que servem de cenário à derradeira festa punk, na desilusão do líder anarquista (que, em uma última transmissão da rádio pirata, pergunta por alguém do outro lado), nas últimas imagens da televisão que, mesmo preservadas em sua integridade (e justamente por isso), lançam um poderoso espectro de desengano sobre o futuro, o esvaziamento pós-utópico de nossa época encontra um olhar inesperado. Filmar o suicídio de um anarquista em 1984 é uma das maneiras mais potentes de pensar o Brasil de 2013. Reconhecer uma dor esquecida e mergulhar na densidade de uma derrota tão brutal é o primeiro vislumbre possível de um porvir.

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