Vidas ao Vento (Kaze Tachinu), de Hayao Miyazaki (Japão, 2013)

março 23, 2014 em Em Cartaz, Fabian Cantieri

Traços de um sonho
por Fabian Cantieri

Os traços de Hayao Miyazaki sempre delinearam formas incontidas de expressão, fossem elas manifestações quaisquer de um rosto, reverberações de uma idiossincrasia monstruosa ou a fundação de um espaço mítico. Do traço, passando pelo contorno, até chegar ao mundo: da plasticidade de um largo sorriso de Mei em Meu Vizinho Totoro (1988), passando pela expansão corporal – fluida e opaca – do Tatari-Gami em Princesa Mononoke (1997) até a própria criação dos Sete Dias de Fogo, do Vale do Vento e da Floresta Tóxica em Nausicaa (1984). À primeira vista, o que se destaca neste epitáfio artístico de Miyazaki é se tratar de sua primeira imersão realista, o que de maneira nenhuma é a mesma coisa de se dizer, como vem fazendo grande parte da crítica, de que pela primeira vez o autor se distancia da fantasia: seu longa de estréia, O Castelo de Cagliostro (1979) não decorria de um registro fantástico, por exemplo, mas era embalado por uma lógica já digerida do desenho animado em que a física dos corpos é altamente distorcida em prol de uma gag ou de um desenlace aventuroso. No fim deste arco dramático, ao tomar a realidade como freio e propulsão de sua história, Vidas ao Vento vem a ser, na verdade, a condensação de sua obra.

Por certo, existe um comedimento neste filme nunca antes visto na carreira de Miyazaki. A cada vôo da cor, somos lembrados por Caproni que estamos diante de um sonho e só por isso é possível o arroubo. Ao longo de sua obra, parece haver uma fricção entre as linhas bigger than life do desenho, que se expande para o intangível e inimaginável, mas agarrado a uma narrativa constrita, de uma precisão budista nos tempos de cada plano (lembremos da repetida construção metódica da queda dos pingos anunciando a chuva seja nesta última empreitada ou em Totoro) que ao mesmo tempo investe em enquadrar ações que não necessariamente empurram a narrativa pra frente, mas congelam feelings da cena (reverberando os planos “vazios” de Ozu de uma forma ainda mais anárquica, como as inserções do sapo, ainda em Totoro, na clássica cena da espera pelo ônibus)Esses pequenos momentos que evidenciam a duração bergsoniana do tempo é impregnante em Vidas ao Vento, pura evidência de um estar-aí, no mundo, através da contemplação da beleza, seja no céu como de aquarela, seja no desenho sonoro da água caindo em meio à floresta na montanha que entorpece e arrefece. Deixar voar o avião de papel e toda sua brincadeira entre o casal nada mais é do que presenciar o mundo confluindo entre os dois, entre nós. O vento é a energia cinética que baliza o funcionamento do avião… é a propulsão da arte.

vidasaovento2

Vidas ao Vento é um filme de porcas e parafusos, de detalhes que determinam o todo, de pequenos planos, de traços sutis, de um comprometimento enorme na configuração dos coadjuvantes nas cenas de multidão. É um filme contido, mas que voa, como seu personagem. Ainda criança, Horikoshi se deita no telhado e imagina seu futuro com aviões em meio a nuvens. Por ser míope, achava que nunca poderia se inserir neste mundo, mas Caproni lhe fala que ele nunca pilotou na vida – ele não precisa ser um ator de suas criações; pode lhes dar formas. Ele pode ser um designer, pode partir do papel em branco, pode desenhá-las e moldá-las. E é com esta determinação ahabiana que ele vai à busca dessa meta sem jamais perder o foco.

A luz e o movimento do céu que moviam Horikoshi inspiravam Monet também. Era preciso criar “uma nova pincelada captando o vento que empurra as nuvens”. Enquanto o protagonista queria possibilitar um meio de estar em movimento com as cores e contornos da nuvem, Monet queria deflagrá-la num instante. Já Miyazaki quer tornar este instante duradouro, apreensível de tempo, de sensação. Um dos set pieces do filme (e também seu cartaz) é Naoko pintando um quadro com um guarda sol branco – uma transposição (narrativamente adaptada, mas quase que visualmente literal) do Ensaio de Figura ao Ar Livre (1886), de Monet. Enquanto na crítica de As Aventuras de Pi eu trazia este mesmo quadro, como uma paralelo entre os movimentos do 3D no cinema e o impressionismo na pintura, aqui a coisa regride para seu interstício mais básico e seu futuro aniquilamento: quais são nossas impressões de um tempo morto? Um grande momento é a construção de pequenas brevidades.

monet

Ensaio de Figura ao Ar Livre (1886), Claude Monet

vidasaoventoposter

Cartaz de Vidas ao Vento

Mas no meio do caminho, existia uma guerra, uma paixão febril, uma tuberculose. Como diz o próprio Miyazaki, “Vidas ao Vento é sobre o mundo que se tornou difícil de fantasiar”. É um filme que quer levantar vôo, mas se depara com um questionamento dessa liberdade justamente ao topar com a guerra. Esse laconismo da arte é destruído em vida em meio à guerra. O gesto fundamental grego de apreensão do tempo ao olhar para as nuvens se movendo é posto abaixo com as bombas das aeronaves militares. A impressão se dissipa em dor; a atenção, em tensão. O sangue que escalda da pintura de Naoko não é o mesmo da chuva que a marca. Enquanto a água remete à nostalgia de um reencontro, o sangue revolve a dificuldade de sobrevida da arte em tempos obscuros.

vidasaovento3

Miyazaki, no fundo, sempre foi herdeiro dos gregos, ao buscar um tipo de harmonia no mundo de forma sonhadora. Para isso, construiu mitologias em que deuses, espíritos, humanos e animais pudessem viver em consonância. Os heróis de Nausicaa e Princesa Mononoke eram heróis (ou seja, seres diferenciados) justamente por serem os únicos a tentarem a confluência de dois universos. À beira de duelos mortais, estavam lá, gritando com seres superiores, buscando um equilíbrio. Nesse sentido, pior do que enfrentar demônios é lidar com a doença de um amor. Horikoshi é inabalável em seu projeto até saber do estado de piora de Naoko. Sai correndo para vê-la e não demora muito para voltar aos trilhos de sua obsessão. A enfermidade do mundo é a impotência de sonhar.

Share Button