Uma História de Amor e Fúria, de Luiz Bolognesi (Brasil, 2012)

maio 16, 2013 em Cinema brasileiro, Do Arquivo, Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira

* Originalmente publicado em Outubro de 2012

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Da inconsciência
por Pedro Henrique Ferreira

Em princípio, as intenções artísticas e políticas de História de Amor e Fúria parecem estar indubitavelmente expressas nas várias frases de efeito que nos coloca a narração emoff do personagem principal, um espírito que reencarna em diversos momentos da história do Brasil. São lemas didáticos como “viver sem conhecer o passado é andar no escuro” ou “meus heróis não viraram estátuas, morreram lutando contra aqueles que viraram”, ecoando na voz murmurada de Selton Mello. A forma grave como o ator as pronuncia traz à mente a sociologia ríspida dos offs do Capitão Nascimento da série Tropa de Elite: não expressam sentimentos ou reflexões íntimas, representam uma grande consciência em terceira pessoa, uma espécie de voz ex machina do filme expondo suas teses pela consciência do personagem.

Nos três episódios de revoluções que compõem o drama épico – um conflito indígena dos tupinambá em 1560; um levante popular no século XIX; o movimento contra a ditadura– assistimos se reforçar cada vez mais estas duas assertivas, que instituem bases para uma revolução popular sob um olhar dialético do conflito de classes. Mas é preciso esperar até o último episódio para notar realmente o tom de urgência que Uma História de Amor e Fúria põe na mesa. Na projeção apocalíptica de um Rio de Janeiro em 2096, dominado por milícias e empresas que deixam as camadas inferiores da população largadas à miséria, é possível se perceber o quanto, através do passado e do futuro, Luiz Bolognesi quer realmente chamar atenção para riscos políticos que são da ordem do presente.

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Mas é justamente neste episódio que ficará clara a contradição entre o saber e o agir: o personagem central, onisciente de todos os seis séculos de história e com definições precisas de como roda sua engrenagem, se tornou um desiludido de classe média-alta, cansado de lutar contra a elite. Por outro lado, a mulher que ele ama, Janaína (Camila Pitanga), que não lembra de nenhuma de suas vidas passadas e, quando comparada a ele, simboliza a absoluta inconsciência… bem, esta continua a insistir em lutar! Assim, Uma História de Amor e Fúria versa sobre a inconsciência necessária para a luta (contra uma elite dominante), o tal “amor e fúria” que poderia muito bem ser vertido em “som e fúria”, quando a consciência histórica só leva à paralisia e é menos fértil que a inconsciência, isto é, que a urgência dos sentimentos.

Há uma curiosa resistência na dinâmica dos personagens aos lemas que o diretor injeta pela palavra. Ou melhor, há um movimento hegeliano no qual o conceito é contradito pela prática, a palavra é negada pelo ato, a tese enfrentada pela antítese. Os offs que falam de um não-viver sem o conhecimento do passado acabam por ser provados o contrário pela maneira como os dois personagens se posicionam no mundo. Temos aí, talvez, um leve indício de um problema pesado. Uma História de Amor e Fúria não “dá a conhecer” a história do Brasil, da mesma maneira que Tropa de Elite não “dá a conhecer” a política atual. O longa-metragem de Luiz Bolognesi utiliza a história como demonstração de uma posição ideológica, como modo de justificá-la. E esta posição ideológica antecede a História (que se tivesse uma brecha no longa-metragem, provavelmente lutaria contra ela). Não é à toa que o longa-metragem precisa inventar um futuro tanto quanto inventar uma origem, inventar o mal para fazer a passagem de um conflito cerebral para um conflito real, inventar o mito para mobilizar as massas.

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É um procedimento maquiavélico, autor que ironicamente é citado em um dos episódios: os fins justificam os meios. Portanto, poderíamos muito bem substituir a citação que abre Uma História de Amor e Fúria para “viver sem ideologia é andar no escuro”. Ora, o problema não é apenas a ideologia caduca reminiscente da década de 1960 que, quando não tem mais a ditadura como alvo, tem de inventar outro inimigo absoluto – a “elite”, o grande demônio do século, uma inteligência organizada em vez de uma classe social, um fantasma contra o qual pegar em armas seria mais do que justo. O que realmente está em jogo é aquilo que certos cineastas às vezes parecem esquecer ou fingir que nunca souberam, isto é, que um filme é ainda e sempre um filme.

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Esquecer isto facilita, risca alguns problemas a priori. Mas não muda o fato de que a arte não faz política por odes românticas à revolução ou por panfletos/panegíricos. No final das contas, o cuidadoso trabalho de animação, que nos remete esteticamente a composições e traços de HQs orientais, acaba um pouco ofuscado pela vontade excessiva de persuasão. O resultado é uma trama de tom didático com a qual o espectador só pode se envolver se, por princípio, concordar. Almejando ensinar, faz desaprender. Subjugada à convicção ideológica que Uma História de Amor e Fúria afirma tão insistentemente, a trama perde a História, perde o Amor e perde também a Fúria. Coisas que fazem o Cinema também se perder. Tal qual o seu personagem principal, por um excesso de consciência do ponto onde quer chegar, Uma História de Amor e Fúria estanca, cansado de não sair do lugar.

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