Era Uma Vez em Nova York (The Immigrant), de James Gray (EUA/França, 2013)

outubro 11, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Filipe Furtado

theimmigrant

Lírio partido
por Filipe Furtado

The Immigrant se abre com uma imagem muito simbólica de chegada (a estátua da liberdade filmada de costas, pouco receptiva) e se fecha com outra, assombrada, de uma partida (Cottilard e Phoenix ambos indo para seus diferentes destinos). Entre estes dois momentos tão carregados de possível significado, Gray busca instalar um drama de sobrevivência que parte de um dos seus mais arriscados desafios. Pois, no centro de The Immigrant, reside uma questão: como encontrar uma profunda entrega emocional num material cujo principio é o do mais completo pragmatismo? Mais do que qualquer outro filme do cineasta, este seu novo trabalho procura lidar com as duas pontas soltas do seu apelo – as dilacerantes explosões dramáticas que trazem consigo um sentimento constante de personagens num limite de dissolução, e o cuidadoso trabalho de tapeçaria social que ele tão bem observa – e localizar nelas tanto em que dialogam como o que têm de irreconciliáveis. A grandeza de The Immigrant está justamente como, na altura do seu último ato, ambos se costuram com tamanha precisão que amplia o impacto emocional da empreitada.

Diferente do que parte da recepção em Cannes sugeriu, o filme não se trata de nenhum grande desvio na trajetória de Gray. A quase completa ausência da família, por exemplo, apenas reforça o mesmo caráter opressor com que ela é retratada em seus outros filmes. Se há uma mudança, é no deslocamento do centro do filme pela primeira vez para um personagem feminino (o próprio Gray declarou em várias entrevistas que a gênese do filme era seu desejo de reler Amantes (2008) pelo olhar das mulheres) e as adaptações de mise en scène necessárias quando Gray se move de um filme construído a partir da figura de Joaquin Phoenix – cujo corpo era tão inseparável dos significados de Os Donos da Noite (2007) e Amantes – para a de Marion Cottilard, cuja presença surge em outra chave. Se Phoenix sugere cair direto de um filme de Maurice Pialat no meio do drama de Gray, Cottilard se aproxima do drama de outra maneira, mais próxima de uma Lillian Gish ou Janet Gaynor, e logo é preciso que Gray busque outras soluções. Se a sequência chave do cinema de Gray continua sendo a perseguição de carros de Os Donos da Noite, é porque nela se apresenta, em miniatura, a mesma facilidade de traçar todo um arco dramático através de um olhar completamente subjetivo, e The Immigrant traça o mesmo processo, apenas colado a uma outra sensibilidade.

Há, nos filmes de Gray, sempre uma riqueza de descrição, um trabalho de instalação em espaços e modos de vivenciar o mundo (algo especialmente aparente no duo Caminho Sem Volta (2000)/Os Donos da Noite) que o tornam um dos poucos genuínos cineastas da atualidade capazes de trazer de forma vibrante todo um universo e com isso seus hábitos e regras. Pois Gray é um cineasta sistemático. Boa parte da dramaturgia em seus filmes nasce justamente do desencontro entre o meio descrito e os desejos dos seus protagonistas. Sob esta ótica, The Immigrant é fascinante justamente pela resignação com que a imigrante de Cottilard se posiciona diante do universo proposto pelo filme (me parece significante lembrar que, até as vésperas de sua estreia em Cannes, o filme se chamasse Low Life).

Há uma resignação lacônica no centro do filme. A fala mais relevante do roteiro de Gray e Ric Manello é justamente um “Eu amo dinheiro. Eu odeio você. Eu odeio a mim mesma”. Se os filmes anteriores de Gray se erguem sobre um conflito claro, em The Immigrant estamos diante de um pragmatismo masoquista. As coisas são o que elas são e, desde seu primeiro encontro, a imigrante sabe que o cafetão ira maculá-la, mas ela segue com ele, e as tentativas dele de aclimantá-la aos poucos se mostram risíveis diante da certeza no olhar dela sobre as suas pretensões. Se The Immigrant flerta abertamente com o melodrama de cinema mudo, o masoquismo de sua personagem central é muito próprio e autoconsciente, menos vitima do cafetão do que sua co-empreendedora. Gray, cineasta da história e da história do cinema, nunca age com a crença de que pode ignorá-la ou simplesmente retomá-la (nos seus filmes, ao contrário do que querem muitos, nunca há pastiche ou regurgitação das suas preferências), mas procura sim repotencializá-la. Gray é um restaurador.

Muito por conta disso, a Nova York do começo do século XX vista aqui não traz consigo o tom vibrante de seus outros filmes. Há uma monotonia de tom que domina as imagens do filme, especialmente na sua primeira metade, que é toda entrecortada, principalmente nas sequências com o mágico, cuja presença em cena parece ser justamente servir o melodrama e permitir o filme balançar a rigidez pragmática do seu masoquismo. Jeremy Renner não tem muito o que fazer no filme, mas ele cumpre muito bem a função de escada que serve para animar a imigrante e seu cafetão e tirar o filme das suas zonas de conforto. Sua primeira aparição é a única concessão de The Immigrant ao mito (não à toa, trata-se da única vez que a expressão “sonho americano” é mencionada – o interesse aqui não é desfazer tal mito, mas simplesmente descrever os efeitos de uma série de escolhas muito mais concretas) e seu número de mágica, em contraste completo com a pobreza do burlesco do “teatro” de Phoenix, é apresentado com um deslumbramento que o resto do filme nunca se permite.

“O amor destrói”. Esta é uma idéia que esta sempre muito próxima da superfície em todos os filmes de Gray e que é mantida em fogo ameno por boa parte de The Immigrant, que está sempre presente nas sequências entre Phoenix e Cottilard nas quais o misto de encantamento (dele) e o tom resignado de duas partes que precisam seguir com seus papeis (cafetão e puta), muito porque são as únicas partes que seus mundos estreitos lhes ensinam a interpretar, mas nunca pronto para tomar contada ação. Nos seu último movimento, porém, The Immigrant a retoma com força, quando o filme reencontra o sentimento de tragédia que tanto fascina o seu realizador e embarca em cerca de trinta minutos dos mais bem sustentados do cinema recente, nos quais o projeto de revitalização de Gray se encontra na mais plena forma.

Aqui, nos rostos de Cottilard e Phoenix, The Immigrant encontra o mesmo efeito de mergulho completo numa existência que os melhores filmes de Griffith ou Borzage eram capazes, incrivelmente tocantes porque, quando a câmera repousa sobre tais rostos, temos este contato tão pouco mediado com o outro. Há uma escolha muito feliz de retomar uma fala que a imigrante falara em polonês para si mesma: “eu não sou nada” – que, devolvida para seu cafetão em inglês, “você não é nada”, redimensiona a ação num movimento de empatia, encontra-lhe um ponto de saída que aproxima as várias pontas do filme, mas sem, com isso, traí-las. Toda a sequência final de retorno à ilha de Ellis tem um cuidado de concepção – cada quadro devidamente consciente de e assombrado por tudo que se passou (há um efeito de eco frequente na forma com que The immigrant mostra Cottilard e Phoenix na sequência, sempre sugerindo ações passadas) que deságua neste pequeno momento de compaixão num filme tomado pelo pragmatismo. Neste momento, fica claro como tudo ali foi urdido para este escape. A imagem com a qual The Immigrant nos deixa é tão assombrada quanto aquela que lhe abre; mas o que ela nos promete não é mais o mito regresso, mas uma ideia de graça que só podemos encontrar no cinema.

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