Talvez Deserto, Talvez Universo, de Karen Akerman e Miguel Seabra Lopes (Portugal/Brasil, 2015)

setembro 1, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

* Cobertura do 5o Olhar de Cinema

talvezdeserto1

Os corpos dóceis e a câmera impassível
por Victor Guimarães

Alguns planos iniciais apresentam, em preto e branco, o espaço externo de um prédio, entre árvores, muros e câmeras de vigilância. A partir daí, o filme adentrará os corredores e os quartos da Unidade de Internamento Forense do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa em busca de seus habitantes, mas o frescor do vento nas plantas, a rigidez das paredes e a impassibilidade do olhar da vigilância não estarão ausentes da mise-en-scène de Talvez Deserto, Talvez Universo.

O hospital – que é também uma prisão – abriga um grupo de homens com doenças psíquicas, considerados inimputáveis pelas instâncias jurídicas. Entre o sono, a troca de roupa, as muitas pausas para a medicação, as esparsas conversas e os incontáveis cigarros, eles se movem por um território labiríntico, em que a frieza do encarceramento convive com a calidez da presença humana. A temporalidade predominante é a da espera e sua figura hegemônica, o torpor: em boa parte do filme, corpos dóceis, rigidamente disciplinados, traçam rotas letárgicas por entre os corredores, como se condenados a vagar indefinidamente por um deserto de concreto. Talvez limbo, talvez purgatório.

A dificuldade enfrentada é, sem dúvida, enorme: como filmar esses homens que parecem suspensos entre a presença e a ausência? A que distância enquadrar um rosto habitado pela doença? Embora quase sempre em plano fixo, o enquadramento varia num espectro extenso: há planos gerais que reúnem a figura humana e a arquitetura, planos de conjunto dedicados a mostrar as interações entre os internos e close-ups de uma proximidade cortante. A relação com os sujeitos filmados também é diversa: há momentos de observação distanciada, outros em que o filme se deixa contaminar pela interação entre eles, e, ainda, alguns momentos de entrevista.

Se na figuração do espaço-tempo do hospital Talvez Deserto, Talvez Universo não escapa de alguns topoi recorrentes no tratamento desse motivo – a rigidez do quadro e os sobreenquadramentos como índice da clausura, a duração estendida dos planos como materialização do tempo repetitivo do cotidiano –, a abertura para a interação entre os homens revela alguns desvios poderosos. Numa sequência memorável, dois personagens encenam um casamento farsesco, com direito a padre e dizeres oficiais. O filme adere à encenação e gargalhamos com eles, nesse breve e belo instante de imaginação criadora em meio a uma repetição que parece não ter fim. Esses instantes de humor rompem com a letargia do cotidiano e injetam calor num filme majoritariamente gélido.

Além de buscar dar conta do espaço, os diretores parecem especialmente interessados em cartografar índices da subjetividade dos personagens, e por isso se dedicam a catalogar escritos, a ouvir conversas ao telefone e a fazer perguntas. Se é verdade que há algumas conquistas notáveis nesse sentido (como a entrevista final, em que a lucidez súbita do doente ressignifica toda a aura de entorpecimento que contaminava o filme), é também nessa aproximação aos personagens que os problemas de Talvez Deserto, Talvez Universo se tornam mais evidentes. O afã por aceder à subjetividade parece levar o filme a tentativas como o momento em que um homem negro, cujo rosto ocupa quase todo o quadro, responde a uma pergunta sobre um texto, lançada por uma voz que está fora de campo. Para o espectador, a questão é muito simples, o que nos coloca na posição de contemplar, por vários minutos, os repetidos erros do personagem e a insistência do professor. Diante daquela cabeça filmada tão de perto, é como se observássemos num microscópio o trabalho dos neurônios por baixo da pele. É então que a tentativa se torna teste, a experiência vira experimento, e o trabalho do filme passa a não se distinguir tanto assim daquele dos psiquiatras que administram a docilidade dos corpos.

Noutro plano, um enquadramento estático, muito próximo, revela o corte do cabelo e da barba de um dos internos. A mão do barbeiro vacila, prestes a lacerar a orelha do homem que protesta várias vezes. Ao final da sequência, quando já é outro o rosto a ocupar o quadro, ouvimos a voz do barbeiro que recomenda que o homem passe na enfermaria para cuidar da ferida. A montagem não é obscena o bastante para nos mostrar o momento do corte, mas sim para alongar o plano a ponto de percebermos que a câmera fora impassível o suficiente para nos fazer observar com atenção o vaivém vacilante da tesoura, até que não tivéssemos outra opção senão esperar pelo ferimento iminente.

Há uma sequência semelhante em Titicut Follies (Frederick Wiseman, 1967), filme que poderia ser apontado como uma referência fundante para Talvez Deserto, Talvez Universo. A câmera de Wiseman acompanha um dos internos, Jim, até a barbearia. Completamente nu, conduzido pelos guardas, o homem é colocado na cadeira e, enquanto tem sua barba feita em movimentos rápidos, responde às perguntas dos agentes sobre a limpeza de seu quarto. Ele diz que o quarto está limpo, mas parece falar uma língua que os guardas não compreendem, pois eles insistem em desautorizar qualquer resposta. Em posição frontal em relação à cadeira, a câmera realiza movimentos sucessivos de zoom in e zoom out que compõem um embate entre o personagem, no centro do quadro, e a instituição, personificada pelos guardas que ora aparecem em quadro, ora ocupam o fora-de- campo. A certa altura, a lâmina corta a boca de Jim, que segue sentado como se nada tivesse acontecido, enquanto um dos guardas se apressa para limpar o sangue e o barbeiro continua seu trabalho implacável. Antes de sair, Jim agradece ao barbeiro, toma um gole d’água instado pelos agentes, faz uma piada sobre voltar para casa e segue seu caminho a passos rápidos pelo corredor. A diferença é crucial: enquanto em Titicut Follies o corte da lâmina é mais uma peça da engrenagem de um processo violento em curso – e que vaza por todos os lados da cena –, em Talvez Deserto, Talvez Universo, ainda que o momento exato não esteja na tela, o ferimento ganha uma centralidade perversa – o rosto ocupa todo o quadro, o plano é bastante longo –, e aparece como um evento singular, preparado pela mise-en-scène e aguardado com angústia pelo espectador. Em momentos como esse, a única diferença entre a câmera de vigilância e a do filme é que esta última é livre para enquadrar mais de perto.

Share Button