Somos Tão Jovens, de Antonio Carlos da Fontoura (Brasil, 2013)

maio 16, 2013 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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Romance de formação
por Andrea Ormond

“A variedade é o tempero da vida”, o reclame de um motel carioca nos anos 1990, dito por um simpático diabinho, pode ser um bom começo de conversa para Somos Tão Jovens, de Antonio Carlos da Fontoura, baseado na mocidade de Renato Russo. Incensado como “rebelde”, “punk” e outras frescuras, o que sobrevive do líder da Legião Urbana no filme é a imagem de um diletante apaixonado por artes. E o que sobreviveu de Renato na posteridade é justamente graças ao aprendizado multidisciplinar, quase erudito, a que se lançou durante a vida e soube aplicar obsessivamente na obra que deixou. De punks e rebeldes, o mundo continua engarrafado. Renato Russo foi único.

O esteio dessa formação livre e diferenciada trai, em um primeiro momento, toda a alegria e angústia adolescente que o filme pretende passar. Pressupõe-se que “jovens” – desculpem o uso de jargões pueris – são plena emoção, em contraponto à razão adulta. Sendo assim, o músico genial deveria brotar como o rebolado de Elvis: do âmago obscuro de um sentido maior, quase divino. Mas Fontoura não cai nessa pantera: Renato (Thiago Mendonça) era professor de inglês, conhecedor de vanguardas. Eis que surge o movimento punk, que ele abraça como elemento transitório, como abraçará sua persona de “trovador solitário” e outras mumunhas.

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Isso torna o filme bom, competente? De jeito algum. Fontoura é de outra geração, outra realidade, e acaba navegando pela penca de estereótipos que desejava combater. Brasília, o calorzinho de Geisel-Figueiredo, a hipocrisia do “você é filho de general?” contaminam-se pela necessidade explícita de explicações fáceis. In loco, O Sonho Não Acabou (1982), nutria-se de maiores sutilezas retratando semelhante realidade. A Brasília de Fontoura parece deslocada em um conto de fadas, como a Liverpool de certas simplificações sobre os Beatles. “Ia acontecer, tinha que acontecer!”, pensamos. Tinha, uma ova. Outros malucos em Goiânia, em Cuiabá, deviam estar fazendo a mesmíssima coisa e hoje estão barrigudos, com netos, ouvindo mp3s do Ivan Lins dentro de um Chevette 86. Renato sozinho, estudando, caminhando, é grande personagem cercado de lugares comuns, malandras obviedades por todos os lados.

Outro leitmotiv da trama, Ana Cláudia (Laila Zaid), a amiga fictícia que inspirou “Ainda É Cedo”, não escapa desta pré-formatação em medida certa para miguxos e miguxas. Ruiva, linda, hormônios pulando do sutiã, fiel e nem um pouco arrogante, todos gostaríamos de ter uma amiga assim na adolescência e iniciá-la nos meandros do sexo simbiótico e compulsivo. A moça é tão perfeita que cabe a Renato traí-la, dispensá-la, entediá-la e qualquer gesto proativo. Uma estátua, moldada aos humores do enfant terrible, que volta no momento exato em que se manifesta a gênese legionária. “O roteiro era quase escravidão, mas me tratavam como Rainha”, caberia a ela dizer, envolta pela sonora bruma de Dado, Bonfá e Negrete.

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Irmãos do Aborto Elétrico, plateias dos shows, hippies esgotados entre punks renovados, também poderiam ser menos escadas e mais gente. “Nunca vou te esquecer”, é a epítome de Petrus, o sul africano doidão voltando para sua terra. Não ia esquecer por que? Renato àquela altura ainda era só alguém no meio da multidão. Lembramos imediatamente daquele filme sobre o Zico, que Fontoura dirigiu em 1998, das coisas mais canhestras na cinematografia brasileira. Sonhando com hordas flamenguistas em busca do eterno ídolo, o diretor de Espelho de Carne (1984) e Copacabana me Engana (1968) naufragou em um produto barnabé de último nível. Somos Tão Jovens nem chega a tanto, mas flerta novamente com esse desejo de “fazer público”, de “ser visto pela massa”. A overdose é macular uma trajetória notável, que só pelo monumento Rainha Diaba (1974) se bastaria.

Quem dera Renato Russo subisse nas tamancas e libertasse em Somos Tão Jovens toda a sua verdade gay. Sim, tal qual o diabinho do motel carioca, ele sabia (e praticava) o lema “a variedade é o tempero da vida”. Entre São Paulo e São João, São Francisco e São Sebastião (um ícone, desde Yukio Mishima), na verdade Russo não queria ter a doce companheira, mas ser a mulher idealizada. Captura a voz, guarda os passos da frêmita ruivinha. “Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente”, cantou em confissão última, agostiniana. Não só no aprendizado existencial, cultural. Também no sexo. Retrato escorrendo por letras de canções, a mulher que Renato amava era sua complexa identificação com o feminino, o barato da Anima. Nunca uma gatinha legal de sessão matinê. Agora, vai explicar isso para quem acredita na bissexualidade mostrada através da terapia do abraço (depois de transar Ana, ele conhece e abraça um rapaz – pronto, sabemos seu dilema!).

Mitigado este combo interessantíssimo, edulcorados outros, opera-se o paciente em terreno seguro. Somos Tão Jovens ergue o troféu de campeão de bilheteria, alimenta utopias infantis. Porém fica difícil não querermos vandalizar o homem do jpeg no Facebook, apócrifo de Clarice Lispector ou Chico Xavier. Vandalizar seria devolvê-lo íntegro, impuro, para as tais novas gerações. Somos Tão Jovens nada significa, nada ilumina, pois nenhuma certeza sobre o mito desconstrói. E o jovem Werther continuará assim, boiando, refém do romance de formação apressadinho, bem calculado e mal escrito.

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