São Paulo em Hi-Fi, de Lufe Steffen (Brasil, 2013)

setembro 1, 2016 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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Banal e verdadeiro
por Andrea Ormond

É tentador escrever sobre um filme que aborda o universo, nostálgico e colorido, das primeiras boates gays de São Paulo na mesma semana em que um louco invadiu a Pulse em Orlando, Florida, e matou quase 50 pessoas em nome da intolerância. O texto correrá o risco das analogias fáceis, dos discursos prontos e das palavras de ordem vazias. Sim, a pior forma de abordarmos um assunto é através do lugar-comum. Ele dissolve questões vivas (evito, com delicadeza, a definição justas) em um eterno repisar daquilo que já sabemos. Mas a dicotomia entre o direito inalienável de alguém ser o que bem entende e as interdições violentas a esse direito, por questões morais ou religiosas, não poderia faltar aqui como preâmbulo.

Com este fantasma sobre os ombros, também seria fácil atacarmos São Paulo em Hi-Fi batendo em seu principal ponto fraco: a excessiva glamourização que constrói em volta da vida noturna paulistana nos anos 1970 e 1980. Assistindo ao filme, à catarse íntima que nos provoca, chego a arriscar o vaticínio de que parte da cultura LGBT trocou sua posição de medo e confronto, de poucos anos atrás, por uma espécie de idealização do passado angustioso. Nada mais falho, basta olharmos a memorabilia do século XX. Rapazes que eram espancados feito bichos, garotas humilhadas por não se encaixarem em padrões ridículos e travestis que andavam com giletes na boca. Gilete na boca? Caso fossem presos, as giletes serviam para uma tentativa de suicídio, que motivava sua libertação.

Se vocês acham que exagero, os programas de TV dos anos 1980, como o Documento Especial e o Comando da Madrugada estão no YouTube, além do curta-metragem Temporada de Caça (1988), de Rita Moreira. Também vale a pena enxergarmos a homossexualidade através do cinema brasileiro da época (o documentário Cinema em 7 Cores (2008) igualmente está à mão). Ah, e os livros Trem Fantasma e Cinema Orly, além de outros, merecem uma pesquisa. Tudo para voltarmos ao início: se São Paulo em Hi-Fi escorrega ao se demonstrar “positivo” demais, diante de uma barra pesadíssima, prefiro acreditar nessa abordagem antes como uma posição ideológica consciente dos entrevistados do que como um defeito ginasiano dos entrevistadores. O problema é que o efeito colateral do “politicamente correto” é justamente, tal como na “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, tangenciar a dor real, substituindo-a pelo simulacro.

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Lembro que em certo momento de Ninfomaníaca Volume 2 (2014), de Lars von Trier, a protagonista Joe afirma para Seligman, seu Deus agostiniano: “A sociedade demonstra sua incompetência diante de um problema concreto removendo palavras de sua linguagem”. A coisa segue em um diálogo banal sobre o uso ou não uso de palavras pouco polidas. Banal e verdadeiro, pois temos nessas escolhas de palavras e emoções, tão comuns no século XXI, um obscurecimento da verdade. Talvez um grande documentário sobre a questão LGBT devesse partir do pressuposto de que nenhuma dor deva ser sublimada. O que mais gosto em São Paulo em Hi-Fi, portanto, é quando a fala de algumas personagens escapa do autocontrole, embora o tal glamour, as casas noturnas, sejam as estrelas do filme: a Medieval, a Homo Sapiens, a Nostro Mondo, a Hi-Fi, que enfeita o título do documentário e, onde, dizem, tocava “A Charanga” da Wanderléa (que luxo!).

Quase todas essas boates, florestas escurinhas onde as monas tinham vez – e que, sem idealizações, vendiam um uísque que dava uma dor de cabeça desgraçada no dia seguinte e onde o sádico delegado José Wilson Richetti fazia a festa… – parecem ter tido um ápice nos anos 1980, com a Corintho. No clássico programa que realizou sobre travestis na TVS, circa 1987, 88, foi lá que o apresentador Goulart de Andrade recolheu algumas de suas melhores cenas. Lá, também, bailam corujas e pirilampos regados a pó em Anjos da Noite (1986), de Wilson Barros. A Corintho, notem, pegou uma época contraditória: a Aids já avançava sobre o mundo (a fala da dona da boate, sobre a doença, faz o espectador chorar!), ao mesmo tempo em que uma certa liberalização dos costumes urgia. Contextualizando melhor, o Brasil saía da ditadura para a democracia e os direitos das minorias ganhavam uma tímida visibilidade.

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O diretor Luffe Steffen consegue amarrar tão bem as ideias, nos fazer olhar tanto para o interior dos entrevistados que, ao começar a introduzir uma incipiente cena lésbica (o Ferro’s Bar), tomamos meio que um susto. Parecia que o mundo inteiro havia sido tomado por homens em busca de outros homens. E, diante dos testemunhos, aquele que me parece o mais significativo: o psicólogo Kaka di Polly, que fala sobre blowjobs no meio da rua Augusta e outros bafões. Homens levavam as namoradas para verem “as bichas”. Depois, voltavam para encontrá-las. Na vertente feminina, Fátima Tassinari e a editora Laura Bacellar, com sua franqueza costumeira, honram a velha escola. Já outros depoimentos pecam pelo inconcluso. O jornal Lampião da Esquina é citado en passant e falta uma ponte carioca às entrevistas, para melhores contextualizações. Apesar da efervescência, São Paulo nunca foi o umbigo do Brasil. Dando um olé no provincianismo (e um alô à gentileza), poderiam ter ouvido, por exemplo, as histórias de João Carlos Rodrigues e outrem que mergulharam de cabeça no período. O Lampião situava-se gloriosamente na Rua Joaquim Silva, 11, Sala 707, Rio de Janeiro-RJ.

Não se enganem com meu tom cuidadoso e reticente. São Paulo em Hi-Fi é para ser visto e revisto, muitas vezes. Troque os grãos de hipocrisia leviana e irritante edulcoramento por grossas camadas de informação. Tenho 38 anos de vida, pesquisadora, diferentona, e não sabia, até hoje, que a Val Improviso citada na música de Cazuza, “Só as Mães São Felizes”, era a casa noturna que ficava na Rua Frederico Steidel, 127. A verdade é que o espectador aprende pra chuchu com São Paulo em Hi Fi. E, em última instância, não podemos exigir de um jovem diretor, pleno de tesão e boa vontade, dialéticas profundas e acachapantes reflexões. Luffe não poderia imprensar a turma na parede e exigir que dissessem verdades sofredoras. São Paulo em Hi Fi é um lugar onde aquelas boates e pessoas puderam novamente ser livres, embora essa liberdade continue sendo posta em xeque. Que sirva de lição.

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