Riocorrente, de Paulo Sacramento (Brasil, 2013)

setembro 24, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

riocorrente

Iconoclastia e errância
por Victor Guimarães

“A bomba que está para explodir na praça é uma questão de linguagem, uma realidade, um signo visual”.

Jairo Ferreira sobre Viagem ao Fim do Mundo, de Fernando Coni Campos

A ficção de Paulo Sacramento – realizador responsável por uma das obras mais decisivas para o que se faz de melhor no documentário brasileiro hoje (O Prisioneiro da Grade de Ferro, de 2003) – é atravessada por uma pulsão vital muito rara no cinema contemporâneo: Riocorrente é um filme em ebulição perpétua, com uma inquietação crítica constante e uma vibração conceitual, plástica e sonora muito evidente. Ao recuperar o caráter explosivo de um cineasta como Sergio Bianchi – mas em uma dicção muito própria –, o filme se afirma como um gesto dissonante e necessário, que tem um potencial verdadeiro de impregnar o espectador com sua virulência.

Os três personagens que conduzem a trama – um jornalista, um ex-ladrão de automóveis e uma mulher dividida entre os dois – são fortemente arquetípicos: o primeiro é um típico intelectual frustrado, afundado na própria impotência, que lembra o Cinema Novo tardio (e, especialmente, um filme como Um Homem e sua Jaula, de Fernando Coni Campos); a mulher é o desejo incontrolável, na busca voraz de novos objetos; o ex-ladrão é pura violência incontida, pura corporalidade prestes a explodir. À margem dos três e da cidade que os abriga e oprime, paira a existência de Exu, um menino que vaga pelas ruas e se constitui como a figura dramática mais interessante nessa estrutura. Há uma benfazeja verve iconoclasta a percorrer todo o filme, espalhando-se por situações, diálogos e imagens, e um incômodo crescente com uma metrópole que parece capturar as vidas, belamente sintetizado no melhor plano do filme (a mulher que corre pelas ruas de São Paulo, filmada em contra-plongée com o rosto desfocado, enquanto os prédios que a circundam aparecem com toda a nitidez).

No entanto, à medida que o filme acontece na tela, as escolhas de dramaturgia e de montagem que dão existência a um sentimento tão potente começam, pouco a pouco, a fazer com que essa iconoclastia genuína se perca em decisões previsíveis e inócuas, que não conseguem imprimir, com a brutalidade estética que o próprio filme demanda, essa violência à escritura. O esquematismo dos personagens – que não parece ser um problema à primeira vista – acaba por se transformar em paralisia, na medida em que todos os destinos da trama parecem estar decididos de antemão. Talvez o ápice desse limite resida nas metáforas visuais de uma obviedade gritante: a visão dos cães raivosos pela mulher dividida entre dois desejos, os ratos a roer os jornais. O coquetel molotov se transforma em garrafa d’água, a cabeça que explode se reconstitui, e o coito interrompido do drama é também o da escritura, que não faz com que esses signos de desordem atinjam a forma do filme e a desestabilizem por dentro.

O refrão situacionista levemente modificado que o filme abraça como uma carta de intenções (“As ideias voltarão a ser perigosas”) expressa, inadvertidamente, o problema central de Riocorrente: trata-se de um filme de ideias, e as ideias que o filme busca encenar são sempre anteriores – e exteriores – à sua existência fílmica. Cada imagem traz sempre em seu bojo um sentido último que se busca transmitir. A montagem – que constitui, certamente, um trabalho rítmico notável – acaba por fazer com que essa sensação de fechamento (e, por isso, morte) do sentido se acentue: excessivamente coesa, sem espaço algum para a vacilação, parece trabalhar contra a própria dramaturgia, na medida em que esta apostava, justamente, em um estado de angústia dos personagens, acometidos pela ausência de sentido que os atormenta. Para usar os termos de Jean-Luc Nancy em Le sens du monde, cada imagem faz com que o sentido – essencialmente errante, sempre em trânsito – logo se torne significação, e nunca retenha sua potência de significância 

Com isso, o trabalho do espectador consiste, fundamentalmente, em decifrar – de maneira cada vez mais veloz – os sentidos já contidos em cada imagem, sem nunca partilhar dessa sensação de errância que a dramaturgia busca figurar (na inconstância de Carlos, na aflição de Marcelo, no fluxo libidinal de Renata, na perambulação de Exu). Se o incêndio do Tietê não nos impressiona mais, é porque o rio que corre no espectador também já foi canalizado há tempos.

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