Ressurgentes: um Filme de Ação Direta, de Dácia Ibiapina (Brasil, 2014)

setembro 1, 2016 em Cinema brasileiro, Em Vista, Victor Guimarães

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O ardor, a invenção e o prazer
por Victor Guimarães

“Arte e revolução, longe de serem noções excludentes, se inter-relacionam
e complementam na práxis e o homem que queira liberar-se de suas alienações
não o conseguirá tratando de atracar acima de sua introspecção,
mas no momento em que participe plenamente não só em suas contemplações,
mas em suas ações práticas, no que toca aos outros seres humanos.”

Santiago Álvarez

Desde seu subtítulo, Ressurgentes: um Filme de Ação Direta se insere em um território bem demarcado: trata-se de um filme inteiramente assentado em um engajamento vital na transformação do mundo do qual faz parte. A preposição de carrega uma duplicidade fundamental: Ressurgentes é, ao mesmo tempo, um filme que versa sobre diversos episódios de enfrentamento entre ativistas e poderes estabelecidos na disputa pelo espaço urbano – levados a cabo por movimentos autônomos de Brasília entre 2005 e 2013 – e uma intervenção direta nas lutas em torno da cidade travadas atualmente no país.

O campo do cinema comprometido, ou engajado, ou militante, ou ativista (os conceitos não são sinônimos e variam de autor a autor, mas costumam indicar um corpus facilmente identificável) é um terreno espinhoso, repleto de nuances e variações, mas que, historicamente, sempre inspirou adesões e rechaços imediatos. Na introdução ao seu livro de entrevistas com o cineasta cubano Santiago Álvarez, Amir Labaki lembra que “o caráter essencialmente militante de seu cinema valeu-lhe desde sempre admirações e repúdios igualmente automáticos, conforme o posicionamento que se tenha frente ao regime instaurado em 1959”. Dificilmente algum crítico sério rechaçaria hoje as contribuições estilísticas do diretor de Now (1965) e 79 Primaveras (1969) – assim como as de Vertov ou Eisenstein, para citar duas obras mais canônicas, igualmente forjadas no interior de um processo revolucionário –, mas basta aparecer um novo filme de intervenção em um festival para que o espectro da “ojeriza ao cinema de militância” (como escreveu Fabrício Cordeiro em sua crítica a Ressurgentes) ressurja.

A riqueza das obras mencionadas já bastaria para desarmar esse preconceito nocivo, mas seu eterno retorno demanda que o afastemos de uma vez por todas. Em seu texto “Political Cinema Today – The New Exigences: For a Republic of Images”, Nicole Brenez diz que “um certo preconceito (bastante útil, quando se trata da recusa em levar em consideração uma obra) se baseia na afirmação de que o cinema comprometido, engajado nas emergências materiais da história, permanece indiferente a questões estéticas. Essa é uma concepção pateticamente decorativa da ambição formal, uma vez que, ao contrário, o cinema de intervenção só existe na medida em que levanta questões cinematográficas fundamentais: por que fazer uma imagem, qual, e como? Com quem e para quem? Com que outras imagens entrar em conflito? Por quê? Ou, em outras palavras, que história nós queremos?”. Da mesma forma que seria patético abandonar de saída um filme por seu aparente desengajamento – como nas reencarnações dogmáticas e redutoras do espírito dos Cahiers vermelhos –, a desconsideração das nuances do trabalho formal de um filme como Ressurgentes é o sintoma de uma crítica aristocrática, míope e preguiçosa.

Logo na primeira sequência, Ressurgentes imerge no olho do furacão. Ao som de gritos e palavras de ordem, um grupo de ativistas tenta forçar a passagem pela porta da Câmara Legislativa do Distrito Federal, no auge do movimento “Fora Arruda”, em 2009. O quadro tremula, a tensão preenche os alto-falantes, até que um mar de mãos se forma e a resistência dos seguranças é vencida pela multidão. Uma operação frequente do filme será a aposta em longas sequências que mostram os embates corporais entre os militantes e os poderes instituídos (produzidas pela equipe do filme ou apropriadas de arquivos das lutas). A escolha da montagem recai, quase sempre, sobre o momento mesmo do confronto, a ação direta em seu ápice, com toda a confusão e a dispersão que lhe é própria. Nessas imagens, não há propriamente personagens – não sabemos nada sobre a biografia de quem está em cena –, mas actantes apanhados em sua performance no momento da crise. Sabemos bem que há um engajamento prévio da enunciação em relação a um dos lados do conflito – que fica claro posteriormente, na escolha dos entrevistados –, mas não há doutrinamento. Se um dos venenos apontados pela crítica ao cinema militante é o caráter didaticamente persuasivo de suas operações formais (do qual a voz over é o sintoma mais óbvio), a duração intensa das imagens dos conflitos – que recusam a sobreposição da música ou do comentário – é o antídoto encontrado por Dácia Ibiapina.

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Uma das diferenças cruciais de Ressurgentes em relação a outros filmes que tentaram abordar as jornadas de junho de 2013 – como Junho, de João Wainer, ou Com Vandalismo, do Coletivo Nigéria – é esse investimento da montagem em certa brutalidade das imagens: ao preservar as texturas (muitas vezes precárias), ao não dissimular a presença dos ruídos e dos pedaços de falas, ao investir em uma imagem que restitui a construção mesma de um ponto de vista gestado in situ e em ato, o filme impede a instrumentalização e oferece ao espectador a possibilidade de forjar, ele próprio, seu ponto de vista a partir do que vê, sem tutelá-lo. “A forma que o tremor das mãos condiciona é a manifestação visível de uma tomada de posição no combate por parte de quem filma”, diz Anita Leandro em seu texto sobre os grupos Medvedkine. O tremor das imagens em Ressurgentes é o índice da impossibilidade de que elas sirvam a um discurso persuasivo previamente formulado.

A iminência da captura pelo discurso ressurge nas entrevistas com ativistas do DF, participantes de movimentos de ocupação da cidade, que analisam sua própria trajetória e o sentido das lutas. Os depoimentos – intercalados às imagens dos combates – são o momento em que o grito e o choro da rua (que aparece na explosão de raiva de uma jovem diante da agressão gratuita de um policial, durante uma manifestação do Movimento Passe Livre na rodoviária de Brasília) têm a chance de se transformar em pensamento. Porém, se num sem número de filmes militantes contemporâneos esse procedimento serve a uma tradução das imagens que conduz a um apaziguamento do conflito inerente a elas, em Ressurgentes o que ocorre é a expansão e a proliferação dos sentidos presentes. Embora haja, muitas vezes, uma relação próxima entre o que se diz numa entrevista e o que acontece na rua, antes ou depois da intervenção verbal, não há ilustração: a fala não traduz a ação direta, não a sobreinterpreta, e sim a faz proliferar. Outro aspecto importante é que os autointitulados militantes não falam em nome de uma ideologia cerrada, e sim se posicionam subjetivamente sobre os conflitos. Na intimidade de casa, não há palavras de ordem ou retórica engessada. Cada moça ou rapaz reconstrói a história vivida por sua própria conta, oferece seu ponto de vista singular sobre os acontecimentos políticos nos quais se envolveu.

Essa diversidade interna das perspectivas (e a presença feminina como potência de diferença é fundamental nesse sentido) é o que impede tanto o enclausuramento do discurso quanto a caracterização excessivamente maniqueísta dos confrontos, e já estava presente desde o momento em que, ainda na ocupação da Câmara Legislativa, um ativista com a camisa da Gaviões da Fiel se insurge contra a multidão ocupante, majoritariamente burguesa, que decidira permanecer no local e esperar pela invasão da polícia, o que resultaria inevitavelmente em prisões e processos: “vocês são tudo réu primário”. Se no plano geral a massa parece homogênea, o detalhe revela que a dor da luta é maior para uns do que para outros. Outro momento que perfura o retrato dualista é o fragmento – intensamente cômico – em que um policial se põe a regular os pedidos de desculpas entre ativistas em defesa do Santuário dos Pajés e representantes da construtora responsável pelo Setor Noroeste, bairro de elite edificado sobre território indígena. A comicidade advém da atuação do PM, performer nato, mas também dessa radical exposição de uma inesperada igualdade entre os participantes da querela: por um breve momento, as hierarquias são reconfiguradas e todos os corpos em cena adquirem o mesmo peso, igualmente frágil, igualmente ridículo. Se o detalhe permitia o esfacelamento da homogeneidade da multidão em luta, o plano de conjunto que reúne os dois lados numa cena comum faz explodir na tela a multiplicidade dos conflitos.

Outra operação importante é a convocação de imagens da televisão, que ora aparecem no bojo da reconstrução histórica (as imagens de Arruda e seus comparsas recebendo dinheiro de propina, veiculadas nacionalmente à época), ora sofrem um desvio e adquirem outros sentidos. Há um gesto irônico, por vezes, como no momento em que o áudio apaziguador da TV – que dizia de uma solução pacífica para o conflito – é sobreposto às imagens da retirada violenta dos ocupantes da Câmara Legislativa pela polícia. A dissociação momentânea entre imagem e som nessa sequência (o filme é quase inteiro composto em som direto) revela um princípio organizador da montagem, que aposta fortemente nas contradições. A escolha do momento do corte é crucial nesse sentido. Em vários momentos, o raccord entre duas sequências de imagens produz uma fricção dialética cortante entre elas. A imagem seguinte à promessa de um representante do governo aos índios do Santuário dos Pajés (de que não haveria nenhuma forma de violência na condução do processo) é a de um trator derrubando impiedosamente as árvores do lugar.

De par com a metáfora utilizada pelo jovem ativista Cled – a história não é uma evolução linear, mas uma “queda de braço” –, a montagem eisensteiniana opera verdadeiros golpes que desconstroem num átimo a sequência anterior e contaminam a seguinte. O golpe aponta para o passado (é um tapa que desconstrói os discursos dos poderes estabelecidos enunciados anteriormente), mas também para o futuro, pois injeta, como um empurrão, uma fúria vitalista nas imagens seguintes. Se a sensação produzida por Ressurgentes é a de uma profunda inquietude – é impossível não se mover diante dessas imagens –, isso se deve não apenas à violência do que está em cena, mas ao movimento intenso engendrado pelo trabalho de montagem. Apesar de evitar a condução musical tão típica de certos filmes militantes – que frequentemente sobrepõem uma trilha de rock n’ roll às imagens dos protestos –, o filme conquista uma façanha muito peculiar: a de acontecer na tela num ritmo contagiante, intensamente enérgico, mesmo sendo feito majoritariamente de planos longos.

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É justamente essa energia ativista que atravessa todo o filme que desaparece por longos minutos no entrecho dedicado à política estudantil. Além de apostar em sequências muito menos conflitivas – uma eleição de DCE, um jogo de capoeira, um plano em que um jovem solitário compõe a paisagem do campus da Universidade –, o casting é desastroso: aquele que funciona dramaturgicamente como o antagonista jovem dos militantes (o representante de uma chapa intitulada Aliança Pela Liberdade, que se coloca como oposição à tendência esquerdista do movimento estudantil) é um rapaz imberbe, inseguro, com um discurso inarticulado e frágil, que o filme faz questão de sublinhar e contrastar com a experiência dos ativistas. Ao se colocar frontalmente diante de um oponente, o filme cede diante da tentação mais óbvia das obras dedicadas a filmar o inimigo: transformá-lo em caricatura, destituí-lo de sua face amedrontadora e convertê-lo em alvo fácil. Assim como na inacreditável entrevista com um transeunte sobre o significado da palavra “fiofó” nas comemorações carnavalescas pela prisão de Arruda, durante todo o fragmento protagonizado pelo dirigente estudantil o fluxo do filme parece estancado, sua potência de inquietude, neutralizada. Em momentos como esses, Ressurgentes perde de vista a intensa vitalidade conquistada por seu trabalho de encenação e montagem e se dedica a arrombar portas abertas.

Essa vitalidade, essa potência de energia é justamente a marca mais distintiva de Ressurgentes. Mesmo sendo uma obra dedicada a historiar um conjunto de lutas que aconteceram no passado (trata-se da primeira tentativa de fôlego de propor uma historicidade para as jornadas de junho), o filme consegue a rara proeza de fazê-las vibrar no presente da experiência da sessão. Num ensaio já canônico sobre o cinema militante (publicado na década de 1970 e retomado por Amaranta César em texto sobre Ressurgentes no catálogo do último forumdoc.bh), Serge Daney apontava os limites desses filmes e lançava uma questão ao futuro: “Como restituir àqueles que lutam – ao mesmo tempo que o sentido estratégico de seu combate – o ardor, a invenção e o prazer que também há em lutar?” A pergunta de Daney – especialmente os substantivos elegidos por ele – se torna especialmente pertinente diante de um filme que deseja incidir sobre uma luta em curso, oferecer inspiração e força para os combatentes dessa batalha cotidiana que vem sendo travada em tantas cidades brasileiras nos últimos anos.

Comecemos pelo ardor. Ao expor – em sequências inteiras – a chaga aberta das ações diretas sem destino certo, esses confrontos que não se sabe como vão terminar, a intensidade desse engajamento integral dos corpos (“a gente se entrega por inteiro”, diz um dos jovens ativistas), Ressurgentes faz com que o espectador se projete inevitavelmente nessas imagens, compartilhe das hesitações de quem filma, do entusiasmo de quem grita e da dor de quem apanha. Se “a câmera desordenada de um confronto numa manifestação se tornou também uma commodity, especialmente após 2013”, como escreveu Juliano Gomes aqui na Cinética, que um filme consiga nos reconectar com essas imagens – tão recentes e já gastas – é algo a ser celebrado.

Em segundo lugar, a invenção. Assim como as lutas atuais clamam desesperadamente por novas táticas, o cinema militante contemporâneo será inventivo ou não será. Ao operar uma montagem que encontra respostas formais à altura das exigências políticas do presente, o filme intervém ativamente na história das formas desse cinema, ensejando maneiras novas de incidir sobre um repertório de procedimentos já explorados à exaustão (a entrevista, a retomada das imagens de arquivo das manifestações, a montagem irônica etc.). Ainda que não haja nenhum grande invento formal, há um talento notável no trabalho sobre formas desgastadas, que dá um salto benfazejo em relação ao filme anterior de Dácia Ibiapina, o panfleto inofensivo O Gigante Nunca Dorme (2013).

Last but not least, o prazer. Aqui reside, talvez, a maior singularidade do filme. De forma surpreendente, e diferentemente da imensa maioria dos filmes militantes, Ressurgentes não é uma meditação sobre a derrota, nem um lamento trágico. Ao se inspirar nos testemunhos desses combatentes orgulhosos, ao encampar a soberba prodigiosa dessa “geração invicta” (nas palavras de Gabriel Soares), o filme adere à ficção ativista e produz sua própria ficção na experiência do espectador: por alguns momentos, no decorrer do filme, é possível deixar de lado as imensas derrotas históricas, o barulho dos cavalos e a imensidão dos prédios do Noroeste e gozar junto com esses rapazes e moças nas pequenas grandes vitórias (a passagem pela porta da Câmara, a derrubada das cercas do Santuário, a resistência à prisão). Em certo sentido, pouco importa que a construção dos prédios da elite sufoque a beleza da música dos Fulni-ô; pouco importa que ao final da sessão os poderes continuem inamovíveis do lado de fora da sala. A ficção é combustível. Pelo menos durante esses setenta e cinco minutos, foi possível crer fervorosamente na ilusão da luta, engajar-se nela com os olhos, os ouvidos e o corpo inteiro, sentir o gostinho de derrubar uma cerca e pixar um trator. Para um filme que deseja intervir no correr da luta, não é pouco.

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