Prometo um Dia Deixar essa Cidade, de Daniel Aragão (Brasil, 2014)

outubro 4, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

prometo

O Dia do Fico
por Pedro Henrique Ferreira

Uma escuridão com um ponto de luz distante é vislumbrada na primeira imagem de Prometo um Dia Deixar essa Cidade, mas logo a palavra vem, na forma de uma narração feminina, e conta sobre o esforço em vão e a demora em se chegar ao fim do túnel. O prólogo precede a tentativa de fuga de um hospício da personagem de Joli (Bianca Joy Porte), que, nua, luta contra os enfermeiros. Logo em seguida, amarrada em uma camisa de força, senta à frente do psiquiatra responsável, que lhe assina alta em tom de ameaça: “se você quer fugir, tudo bem. Mas vai acabar voltando para cá”. Nestes poucos segundos, somos colocados diante de um sentimento verbalizado e um agouro premonitório que, em realidade, falam da mesma coisa: a tarefa hercúlea que é sair de um ciclo vicioso e resolver um problema.

É justamente na caracterização deste “problema” que o segundo longa-metragem de Daniel Aragão cria um quadro de enorme lucidez. Joli tenta reconstruir a sua vida após o período de internação por conta do vício em drogas, apesar do evento traumático e gatilho que realmente tenha levado à internação permanecer sempre algo nebuloso. O primeiro ato do filme narra a sua tentativa de reinserção no mundo e as diversas facetas da rejeição que tem de enfrentar, tanto quanto evidencia a incompatibilidade entre a personagem e o seu universo circundante. Eventualmente sendo oferecida uma “nova chance”, é empregada na campanha do pai Antônio (Zécarlos Machado), um milionário e pré-candidato a um cargo executivo por um partido de natureza social, que se aproveita de sua “história de superação” para propagandear sua política contra as drogas.

A narrativa prossegue revelando aos poucos a encenação da política social governamental populista de Antônio e o impacto nefasto das medidas na cidade. Em outras palavras: compra de votos, sanguinolência contra os drogados e extermínio da miséria. No meio deste sistema de cartas marcadas que não dá resultado social nenhum, Joli se encontra em uma posição de sonhadora passiva, expressa de maneira muito congruente na sequência em que, tendo dificuldade em ler no teleprompter um discurso pronto a ser filmado para a campanha, começa a divagar sobre a necessidade de executar mudanças reais em Recife e, em vez de abandoná-la, transformá-la. Com um chamado do diretor de cena, volta à realidade de sua posição de âncora, conclui fazendo propaganda do partido e recebe aplausos. Sua vontade é solitária. Todos à sua volta ocupam cargos determinados e contribuem cinicamente para um sistema viciado que finge fazer política social.

Este panorama promissor que ocupa talvez pouco mais da metade do longa-metragem começa a degringolar quando Prometo um Dia Deixar essa Cidade parece ter alguma dificuldade em atar os nós abertos. O trabalho de estilização funciona muito bem na medida em que acompanha os dramas solitários de Joli, criando alguns momentos de rara beleza e fortes cenas de imersão em sua psique, acompanhado de uma encenação contida e um olhar mais nuançado sobre os personagens que condena. Um exemplo muito bem sucedido é a sequência em que, retornando do hospício após a iminência de uma nova internação, a protagonista ataca o namorado e o joga ao chão da estrada, ambos caindo em primeiro plano, pedindo que ele confie nela, ao que ouve como resposta: “confio, mas você também precisa confiar em mim”. Mas a certa altura do longa-metragem, na mesma medida em que a solidão de Joli se verte em rebeldia (interpretada pelo seu universo circundante como loucura e retorno às drogas), este cuidado se perde, e a estilização se transforma cada vez mais em histrionismo. De humanas, as figuras se tornam estereótipos rasos, e o trabalho de saturação do tom da obra – que era evidente, mas nunca saltava aos olhos – passa a querer protagonismo.

Curiosamente, Prometo um Dia Deixar essa Cidade é um grande filme quando tem de apresentar um problema, mas se perde, ou recua para um local de indefinição, quando tem de resolvê-lo. Com dificuldades em prosseguir elevando organicamente a estrutura que começava a montar, passa a investir no reboco e no acabamento, se agarrando no trabalho de composição de imagens afetadas e extremamente literais (como a péssima e óbvia escolha de, num contraplano, substituir o rosto do namorado pelo rosto do pai) e, eventualmente, escapar para um onirismo que não faz mais do que repetir, em estilo exacerbado, desumano, altivo e até grosseiro, o que já fora tão meticulosamente colocado nos algarismos iniciais. Simplifica, assim, o que é um processo muito complexo. Com isso, o longa-metragem constata sua incapacidade em resolvê-lo, retornando às assertivas proféticas do princípio, à luz vislumbrada no fim do túnel de escuridão que nunca chega. Por um lado, o filme de Daniel Aragão tem o mérito em compreender que não é Joli que é louca, mas a cidade como um todo. Por outro, tem dificuldade em articular o que sua protagonista pode fazer para transformar essa Recife que nunca muda e só existe como promessa ou nostalgia.

Como vem sendo comum no cinema brasileiro contemporâneo (e já falamos sobre isso aqui na Cinética), estamos novamente diante de uma protagonista cujo berço é a elite, mas com inclinações que visam uma transformação social, e que sofre de uma espécie de crise de consciência (aqui transformado em ódio generalizado) por não ser capaz de tornar suas aspirações em coisas concretas. O refúgio é sempre, por um lado, o onirismo ou a nostalgia; e por outro, a eterna constatação dessa impossibilidade de se atingir a luz no fim do túnel. O que se sugere é que o problema de Joli pode ser simplesmente a sua solidão em meio ao universo nocivo à sua volta. Irônico, pois: com tantos filmes recentes que apresentam este mesmo retrato, como Joli ainda pode se sentir sozinha?

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