Plano B, de Getsemane Silva (Brasil, 2013)

setembro 24, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

planob

As ausências do rosto
por Victor Guimarães 

A premissa de Plano B é das mais interessantes: recuperar o processo de construção e a história posterior de Brasília, Contradições de uma Cidade Nova – filme de Joaquim Pedro de Andrade realizado em 1967, a partir de uma demanda da empresa Olivetti e posteriormente recusado pela companhia e censurado pelo regime militar – e explorar, nesse processo, as novas (velhas) contradições que ainda persistem entre o urbanismo ideal do plano piloto e a exclusão das cidades do entorno de Brasília. Nesse percurso, o filme se servirá da presença de três grandes homens de cinema – Affonso Beato, Joel Barcellos e Jean-Claude Bernardet – que participaram do projeto original, além de algumas outras entrevistas e da matéria fílmica de Contradições.

Embora o filme carregue algumas boas decisões de roteiro – a promoção do encontro entre os três velhos amigos, a busca por um personagem secundário do filme de 1967 –, a existência cinematográfica dessas escolhas é inteiramente comprometida por uma estilística insossa, que se utiliza de procedimentos televisivos – entrevistas que só existem por seu valor de informação, trilha sonora banal e completamente alheia ao universo do filme – e de clichês do documentário de busca já desgastados. O rigor do belíssimo filme de Joaquim Pedro – retomado inúmeras vezes durante a projeção –funciona, um tanto paradoxalmente, como uma espécie de testemunha do fracasso do filme que assistimos. A cada nova opção automática, a cada nova articulação desconjuntada da montagem, é como se a presença de Contradições entre o material exibido expusesse o tamanho do engodo de Plano B.

A presença de Jean-Claude Bernardet entre os personagens também atua – à revelia do filme – nessa direção: em um determinado momento do encontro entre ele e Edla Van Steen (que participou do projeto como assistente da divisão cultural da Olivetti), Jean-Claude chama atenção para um detalhe que passava despercebido: em sua fala, Edla começara a chamá-lo de Joaquim, confundindo-o por um breve instante com o finado cineasta. A intervenção de Jean-Claude na cena desata um dos momentos mais interessantes do filme, em que Edla diz ter tido, por um momento, a imagem clara de Joaquim Pedro diante de si. Em todas as entrevistas subseqüentes, o cineasta em cena nunca tomará uma atitude à altura da intervenção de seu personagem: ele está sempre munido de boas perguntas, mas nada do que acontece na cena parece provocá-lo ou despertá-lo para um caminho inesperado; nenhuma sequência se abre para um desvio de rota, para um deslize, para um gesto produtivo de cinema. O automatismo e a falta de rigor são tamanhos que, em um plano imediatamente seguinte a uma conversa amena entre os três amigos que se reencontram, a montagem convoca um momento de Contradições em que a narração de Ferreira Gullar começa com um texto extremamente crítico (“longe daquele bulício…”), o que produz uma relação de continuidade impensada – e inaceitável – entre duas coisas de natureza incompatível.

Na busca por um dos entrevistados por Joaquim Pedro em 1967, o filme explora um conjunto interminável de clichês: o cineasta e o produtor aparecendo como exploradores incansáveis, em um auto-elogio inócuo e inverossímil; a procura pelo tal homem se sobrepondo a qualquer outro devir possível da cena. A obrigação infantil estabelecida pelas regras do dispositivo – só interessa ao filme aquele personagem específico, como se qualquer outro encontro fosse irrelevante e menos revelador das contradições que o filme quer explorar – ignora qualquer potência que pudesse surgir nas vidas dos moradores atuais de Taguatinga, que continuam a sofrer com a mesma exclusão espacial denunciada em Contradições.

Por um golpe de sorte, já próximo ao final, o filme encontra uma neta do tal entrevistado. Uma personagem potencialmente fortíssima, cuja consciência do processo histórico impressiona e nos devolve algo do “elã vital” que Joel Barcellos enxergava em Contradições. Diante dessa possibilidade, a banalidade da montagem, novamente, desperdiça a potência do rosto, transfere as palavras de Catherine para a voz over e, como se não bastasse, sobrepõe a elas a mesma trilha sonora que só serve para impor um ritmo televisivo onde ele não faz a menor falta. No plano dos créditos finais, os operários filmados de costas testemunham pela última vez o interesse torto do filme. O momento lapidar da narração de Ferreira Gullar que expressa o desejo de Joaquim Pedro de descobrir “no rosto do povo, o quanto uma cidade pode ser bela” – sistematicamente contrariado pela escritura do Plano B – nos lembra, uma vez mais, o quanto é preciso, em um filme, fazer cinema antes de fazer política.

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