Outro Sertão, de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela (Brasil, 2013)

setembro 21, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

outrosertao

O documento e o cinema
por Victor Guimarães

A matéria-prima de Outro Sertão é um achado historiográfico notável: enquanto atuava como vice-cônsul em Hamburgo durante os primeiros anos da Segunda Guerra, João Guimarães Rosa tornou-se responsável por facilitar a vinda de dezenas de judeus ao Brasil, em pleno flerte do governo Vargas com a Alemanha nazista. O substrato literário que acompanha essa história também é impressionante: espalhado por documentos oficiais, cartas e diários, um conjunto significativo de relatos escritos por um dos maiores artífices da língua portuguesa reconstrói, com a expressividade que lhe é própria, detalhes da vida alemã da época a partir de um olhar ao mesmo tempo familiar e inédito para os que só conhecem sua obra de ficção.

Diante de um manancial de documentos tão inegavelmente rico, decide-se empreender um filme. É preciso encontrar as imagens e os sons que possam constituir a carne cinematográfica da narrativa. Em um primeiro movimento, o que vemos é um amontoado de imagens de arquivo da época, que dão corpo à voz over empenhada em trazer à tona os relatos roseanos: navios, ruas, praças e restaurantes – sempre repletos da presença humana – acompanham uma narração em tons bastante pessoais, que variam da extrema alegria com a chegada (que denota a imensa admiração que Rosa nutria pela cultura alemã) até a decepção com um povo “conservador e que só se interessa por carros blindados e aviões de bombardeio”. Nas cartas e fragmentos de diário, emerge, pouco a pouco, uma subjetividade dilacerada pelo testemunho da progressiva dilapidação dos direitos dos judeus: a tristeza com as restrições à alimentação, o desapontamento com o “lugar de brinquedo para crianças arianas” indicado por uma placa em um parque. As imagens que vêm ao encontro dos textos, no entanto, não adquirem expressividade própria: à exceção de um ou outro relance (como as bandeirolas nazistas que enfeitam a alegria inocente em um bar), esses arquivos se fazem valer muito mais por seu poder de documento histórico do que por uma eventual potência estética.

Se a escolha das imagens não é aleatória, o uso que a montagem faz delas certamente as despotencializa: a voz assume a inteira tarefa da narração, enquanto os arquivos imagéticos passam a cumprir um papel coadjuvante. A certa altura, mesmo a expressividade dos textos decai em importância. Nas sobreposições de vozes que, vez ou outra, embaralham diferentes fragmentos de narrativa, uma escolha que poderia se transformar em um poderoso gesto de cinema se torna apenas o preenchimento do intervalo entre um relato e outro: a matéria literária perde força, se esvazia e, progressivamente, cede lugar à contínua louvação dos feitos diplomáticos de Rosa (seus “cambalachos” em Hamburgo, com a ajuda da futura esposa Aracy de Carvalho, o tornavam conhecido entre os judeus alemães, que passavam a procurar o consulado daquela cidade na esperança de conseguir um visto para o Brasil). Do mesmo modo, a construção sonora – a cargo do duo mineiro O Grivo – também chega a criar alguns climas potencialmente interessantes, mas é logo subordinada ao prosseguimento da intriga principal.

Ao longo do filme, cada vez mais torna-se evidente que o pendor historiográfico predomina fortemente sobre o estético. Em um segundo movimento, a montagem convoca diversas entrevistas (com amigos de Rosa na Alemanha, com pesquisadores da Faculdade de Letras da UFMG, com descendentes dos judeus ajudados pelo diplomata), que adquirem apenas valor informativo: a presença dos corpos na cena, a relação com o espaço filmado, o encontro com as realizadoras, enfim, tudo o que pertence ao cinema cede lugar à documentação. Há um exaustivo – e obviamente louvável – trabalho de investigação historiográfica, mas a chegada desse material ao filme se dá por caminhos já reiteradamente traçados: o que se diz sempre prevalece sobre as maneiras de dizer; o conhecimento da intriga impera sempre sobre os modos fílmicos de sua expressão.

À exceção de algumas poucas escolhas de força genuína – como a presença das canções que abrem e encerram o filme, ou a convocação da personagem de Aracy – a arte é constantemente derrotada pelo documento. De forma semelhante à crítica elaborada por Serge Daney aos filmes militantes em “O espaço político”, o cinema em Outro Sertão se torna um “momento neutro, transmissor sem potencialidade da popularização de ideias elaboradas em outro lugar”. Tudo se passa como se as coisas que importam já tivessem acontecido em outra parte – na História, nos documentos, na pesquisa – e o espaço-tempo do cinema fosse incapaz de fazê-las vibrar de outra maneira, de fazê-las acontecer novamente no encontro do filme com o espectador.

Share Button