Os Pobres Diabos, de Rosemberg Cariry (Brasil, 2013)

setembro 22, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

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Contatos mediados
por Victor Guimarães

Os Pobres Diabos traz à tona um verdadeiro leitmotiv da cinematografia nacional. Das comédias de Mazzaropi a O Palhaço, de Bye Bye Brasil aos filmes dos Trapalhões, o circo e seus personagens – verdadeiros totens da cultura brasileira – são um tema recorrente, que reaparece de quando em vez (aqui mesmo, em Brasília, há pelo menos dois curtas dedicados ao circo: O Canto da Lona, de Thiago Brandimarte Mendonça, e Palhaços Tristes, de Rafael Lobo). O filme de Rosemberg Cariry reencontra o universo circense sob o signo inevitável da nostalgia, na história do Gran Circo Teatro Americano, que chega a uma localidade remota do interior do Ceará para a montagem de um espetáculo, em meio à precariedade das condições do lugar.

Na abordagem de um tema tão repisado, há também um esforço de se aproximar de uma estética circense, na tentativa de render homenagem a essa arte em vias de desaparição. No entanto, embora esse contato guardasse o potencial de descobrir outras possibilidades para o gesto cinematográfico – caso o desejo de invenção apostasse verdadeiramente na fricção com essa outra estética –, o que vemos é a adoção sem ressalvas de um estilo hegemônico, que bloqueia qualquer impureza, qualquer contaminação.

Embora haja alguns toques de contemporaneidade (o uso do scope e a horizontalidade dos enquadramentos; as hélices das usinas de energia eólica que aparecem vez ou outra no fundo do quadro), a verve dramatúrgica que faz os corpos existirem em cena é tributária de uma tradição cênica já bastante gasta. Os motivos pitorescos estão todos lá, absolutamente previsíveis: a disputa pela atriz mais bonita, o roubo da galinha, o palhaço bêbado, o churrasquinho de gato, o leão falsificado, a antena parabólica que não funciona. O tipo de humor que se tenta extrair das situações – sempre baseado na velha inadequação entre o desejo humano e as condições materiais de sua concretização – nos soa tão familiar que não consegue mais fazer rir. Soma-se a isso um regime de interpretação – ao mesmo tempo naturalista e pomposo –que faz pensar imediatamente em um gabarito teledramatúrgico já amplamente difundido: embora as atuações estejam empenhadas em produzir a verossimilhança mais usual – tarefa que é facilmente cumprida pelo elenco competente –, o mesmo gesto também pressupõe o uso de sentenças constrangedoramente lapidares (frases como “ninguém mais quer saber do artista” e “a arte tudo vence”, ditas em uma conversa corriqueira) e situações de uma pieguice quase inacreditável (como a amizade entre o filho do eletricista e a menina Isaurinha, que tem direito a bolhas de sabão).

Como nas telenovelas, todo o edifício dramatúrgico se assenta nos diálogos, que precisam sempre dar conta de todos os detalhes da intriga. Paradoxalmente (para um filme que busca figurar uma arte na qual a corporalidade é crucial), tudo precisa ser reiteradamente dito, e os corpos só operam em função daquilo que se diz (“eu vou ligar o gravador pra ver se ele vai me escutar”, diz a menina em meio ao incêndio, antes de ligar o gravador). Quando o filme se vê diante da necessidade de criar qualquer clima dramático minimamente dependente da força das imagens (como a sedução entre o palhaço Gasolina e a moça evangélica ou o início do incêndio final), o resultado na tela é desastroso.

Nesse sentido, é sintomático que a única performance verdadeiramente interessante seja justamente a do rapaz que vive o personagem Tarzan, cuja inadequação ao estilo naturalista em uma sequência de conversa com o dono do circo aponta para um outro lugar, e se transforma na única presença disruptiva em meio ao modo de interpretação hegemônico. Mesmo a convocação dos atores ocasionais (para utilizar a bela definição baziniana, hoje esquecida) – como espectadores das apresentações do circo, por exemplo –, longe de empresar algum frescor à cena ou de desestabilizar o regime performático dominante, apenas reafirma a clássica divisão do trabalho – materializada a cada plano – entre dois tipos de atores: aos profissionais, é reservado o centro da cena, um nome, uma curva dramática, uma intensidade psicológica particular; da presença dos ocasionais, interessa apenas capturar uma pose fugaz do rosto, um número de corpos a ocupar o quadro, um aplauso indiferenciado.

As imagens só acontecem em função da intriga, e a montagem não permite sobras. Por conta desse mesmo padrão imposto a tudo, algumas escolhas potencialmente interessantes (como a imitação da Santa Ceia de Da Vinci ou o truque de montagem que faz vacilar a crença no encontro do palhaço com a evangélica) perdem toda a força, e permanecem como gags tão inofensivas quanto as velhas piadas sem graça. Dessa viagem ao circo, o cinema saiu ileso.

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