Os Pássaros Estão Distraídos, de João Torres e Diogo Oliveira (Brasil/França, 2016)

setembro 1, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

* Cobertura do 5o Olhar de Cinema

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A estrutura e a vida
por Victor Guimarães

Em qualquer festival dedicado ao cinema contemporâneo no Brasil – e não só no Olhar de Cinema –, por mais paradoxal que possa parecer, a descoberta é um sentimento raro. No mais das vezes, os filmes são recobertos por uma aura de expectativas diversas, o que faz parte do contexto – e, no limite, é inevitável –, mas também pode nublar a sensibilidade. Quando se trata do cinema brasileiro, cujas linhas de força conhecemos mais de perto, é quase impossível chegar a uma sessão num estado de total ignorância – e, consequentemente, abertura. Num cenário como esse, é com entusiasmo que recebo um filme como Os Pássaros Estão Distraídos – não apenas devido ao desconhecimento em relação ao trabalho prévio dos realizadores, mas também porque a matéria fílmica parece tomada por um frescor que se desprende muito rapidamente das imagens.

Logo na primeira sequência, uma articulação peculiar se anuncia: enquanto ouvimos um telefonema entre o idoso José Mauro e Hilda, a mulher responsável por cuidá-lo, o quadro mostra a televisão, que exibe uma sequência de Flashdance (Adrian Lyne, 1983) em que a heroína assiste a um balé. A câmera logo passa a perscrutar o espaço do apartamento – será seu trabalho durante todo o filme –, enquanto uma convivialidade singular começa a se descortinar na banda sonora: José Mauro está prestes a se mudar para o prédio da frente; Diogo (seu filho, talvez?) já não mora ali, mas chega para ajudar a empacotar as coisas; e Hilda governa a casa (que não é sua), a mudança e, em certo sentido, o filme. A disjunção entre imagem e som e o jogo com as mediações darão o tom desse filme surpreendente, que tem pontos de contato com algumas investigações recorrentes do cinema brasileiro recente – a ficcionalidade do cotidiano, o filme de prédio recifense, a sensibilidade da pista de dança de Leonardo Mouramateus –, mas cujo olhar é prenhe de vivacidade e irreverência.

A pulsão narrativa que ocupa a trilha sonora é friccionada por uma visualidade estrutural, herdeira direta dos experimentos de Michael Snow e da Chantal Akerman dos anos 1970. Esse atrito produtivo tem seu ápice no mais belo plano do filme, em que a câmera gira sobre seu próprio eixo na sala do apartamento: enquanto ouvimos diálogos telefônicos entre Diogo e Hilda (ele fala que vem visitar em breve, ela conta do processo da mudança), o quadro rastreia as paredes, em busca dos índices da vida impressa nos objetos. A rotação continua e o plano se torna ainda mais inventivo quando os corpos de Hilda e Diogo começam a habitar a cena, criando um palimpsesto de temporalidades que se sobrepõe às camadas de memória presentes nos enfeites, nos quadros, nos discos de vinil. A certa altura, quando o movimento passa mais uma vez por Hilda, a figuração é acometida por uma gagueira momentânea, num flicker breve, e o que era La Chambre (Akerman, 1972) se tinge de Wavelength (Snow, 1967), com a diferença crucial de que se trata de um filme que não abandona, em nenhum momento, sua vontade de narrar.

O debate sobre o afeto no cinema brasileiro já se tornou bastante enfadonho, seja porque os termos são imprecisos (afeto, palavra tão múltipla, virou sinônimo de apaziguamento ou de ausência de conflito, de um lado do espectro; ou de um feelgood celebrado acriticamente, do outro), seja porque certo discurso crítico difuso parece interditar aos filmes a entrada no território das paixões alegres. Os Pássaros Estão Distraídos passa ao largo, felizmente, dessa querela crítica e acadêmica, e se embrenha de bom grado no convívio cálido entre os personagens que se despedem da casa onde viveram por anos. Essa estima evidente por quem se filma – que se plasma nas vozes que transbordam afabilidade ao telefone –, no entanto, é constantemente perturbada por uma força estrangeira, materializada nas urgências da urbe (a grua da construção civil está lá, a metros da janela sempre aberta), na permeabilidade do apartamento à exterioridade do mundo (a televisão sempre ligada) e na adesão a uma mise-en-scène que não cessa de afirmar seu caráter de artifício e de cálculo.

Com rara habilidade, a montagem precisa e bem ritmada é a força motriz que faz conviver esses polos a priori opostos, mas que no filme parecem se misturar organicamente. É como se a câmera autômato de La Région Centrale (Michael Snow, 1971) fosse devolvida ao terreno dos afetos humanos: abstração e materialidade, estrutura e existência encontram sempre novas maneiras de se enlaçar nesse filme tão consciente de suas escolhas. Filme estrutural aquecido pela ficção, filme de amor atormentado pelas paixões duras da forma. Os Pássaros Estão Distraídos é a descoberta de uma rota possível, onde a aventura investigativa com a superfície das imagens e a abertura aos humores da vida possam caminhar lado a lado.

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