Os Dias com Ele, de Maria Clara Escobar (Brasil, 2013)

maio 5, 2014 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Filipe Furtado

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Diálogo sobre o poder
por Filipe Furtado

O primeiro corte de Os Dias com Ele é bastante representativo: Carlos Henrique Escobar está a descrever de forma protocolar seu trabalho intelectual, encarando a câmera operada por sua filha, quando o filme lhe interrompe, para depois retomar com o personagem já um tanto mais relaxado, falando dos amigos que perdeu. Do espaço entre estes dois momentos se faz a matéria prima central do filme: uma tensão constante entre vontades, entre o desejo de Carlos Henrique Escobar de impor limites bem claros ao filme que sua filha faz, e os de Maria Clara Escobar de tentar expor o pai de forma a revelar mais de si mesmo. Não à toa, Os Dias com Ele se estrutura dramaturgicamente a partir das memórias de torturado de Carlos Henrique, da sua necessidade de mantê-las sob controle, e da vontade da filha de resgatá-las.

A certa altura, a cineasta questiona o pai sobre como a tortura representa um encontro físico com a história, e um dos aspectos mais curiosos de como este jogo de desejos funciona é a maneira que ele coloca em conflito a palavra e o cinema. Pois Carlos Henrique Escobar é um intelectual, homem de palavras e ideias, que, diante das perguntas da filha, busca sempre uma saída pelo conceito. Enquanto ela lhe questiona sobre experiências, ele se esforça para redirecionar as respostas sempre na direção do abstrato. O cinema, porém, é uma arte do concreto, e a diretora não só segue questionando-o verbalmente, obrigando-o a se engajar com a própria experiência, como os planos do filme fazem o mesmo, revelando Carlos Henrique em momentos inesperados – descansando na poltrona, fazendo trabalhos de casa com o filho mais novo, discutindo com a esposa… sendo, por fim. Os Dias com Ele faz este trajeto da palavra às coisas, e, no processo, transforma as memórias da relação pai/filha, pai/história, em algo igualmente concreto.

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No centro do filme, está uma disputa por poder. Todo o duelo entre pai e filha sobre como o filme deveria ser expõe um campo de batalha mais amplo. De um lado, há a questão do patriarcado (e dali também, na trajetória política de Carlos Henrique, a da pátria – e o filme reforça sempre que possível a posição de auto-exilado do seu personagem). Carlos Eduardo retém o poder pela condição de pai: logo na primeira pergunta mais pessoal de Maria Clara, sobre suas lembranças da infância, ele inverte a questão e diz que a mãe dela o fizera assumir o compromisso de bancar a filha até os 18 anos; do contrário, abortaria. O pai olha a filha de cima, acredita que pode ditar direções a seu projeto, e crê poder escapar das perguntas dela quando quiser. Numa das sequências mais inspiradas do filme, a filha o questiona sobre uma passagem de uma de suas peças e ele finge não saber do que ela fala, até que a esposa o interrompe e diz que a cena existe. Descoberto, ele muda completamente o discurso, e começa a tratar da cena com grande especificidade, indo rapidamente do completo esquecimento para uma descrição de discussão com atores sobre o tom da cena que deixa claro que ele sabe muito bem do que fala.

Do outro lado, há o poder da cineasta Maria Clara Escobar sobre Carlos Henrique, o personagem. Pois, se o pai tenta se afirmar o tempo todo, a filha devolve no mesmo tom. Os Dias com Ele é sobre um personagem em revolta que, de certa forma, se recusa a aceitar o papel que lhe foi imposto. Neste sentido, é um documentário que se distancia muito dos diários recentes que se multiplicaram no cinema brasileiro sobre sobreviventes da ditadura e seus familiares, e se aproxima muito mais dos trabalhos mais auto-reflexivos de Eduardo Coutinho, ou de alguns dos filmes de Jacques Rivette sobre a figura do ator. Há um grande desnível de poder exposto aqui, pois se Carlos Henrique pode batalhar com a filha-entrevistadora no corpo-a-corpo, ele nada pode fazer no momento em que ela parte para a montagem. Os Dias com Ele pode se apresentar como uma longa conversa/encontro com Carlos Henrique Escobar, mas é em verdade um filme de montagem, cujos sentidos são todos dados posteriormente. A revolta do personagem tem um limite claro, justamente na medida em que a montagem vai conduzi-lo em direção à ficção que mais interessa ao filme; se ele interpreta o tempo todo e busca construir um tipo para a câmera, todo o seu comportamento turrão será redimensionado para o personagem que o filme decide construir na montagem.

Esse processo lembra a forma como Isto Não é um Filme (2011), de Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb, constrói seu sentido político a partir do dissenso entre as visões de o que seria um filme político para cada um dos dois cineastas-atores. Igualmente, aqui, com o dissenso entre o filme protocolar sobre a sua obra que Carlos Henrique imagina e a recomposição de sua memória que Maria Clara persegue, o resultado final que surge do diálogo destes desejos é muito mais forte do que qualquer um destes filmes seria individualmente – e não deixa de ser um refresco, no meio de tantos documentários-processo recentes, asssistir a um que parece se descobrir enquanto acontece, no lugar de apenas usar o processo para realçar seu dispositivo prévio. Os momentos em que Os Dias com Ele inclui planos pré e pós-filmagens não existem como simples fetiche, mas como partes essenciais do processo de construção de conflito do filme.

Para um documentário que se propõe como um encontro e se desenrola como uma série de entrevistas, Os Dias com Ele é um filme extremamente violento. Há um prazer perverso por parte da cineasta em incluir os momentos cruéis do pai, como na sequência em que ele confessa que sabe ter três filhos, mas que a maior alegria da sua vida é conhecer seus gatos. É uma violência que alcança seu ponto de saturação quando Maria Clara e Carlos Henrique discutem sobre ele ler ou não um documento de prisão do DOPS: enquanto ambos levantam a voz de forma acalorada, a câmera permanece fixa, mirando uma cadeira vazia. A ausência na imagem é tão violenta quanto as palavras trocadas entre pai e filha. Parte da força de Os Dias com Ele reside justamente em como ele encontra formas concretas de representar seu conflito.

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Na sua parte final, após Maria Clara finalmente conseguir extrair do pai uma confissão mais direta sobre as suas experiências na ditadura, Os Dias com Ele se move, se não para uma conciliação, para um entendimento. No processo, perde um pouco de força, como se o filme precisasse do tom mais violento do conflito pai/filha para se manter em movimento. O tom melancólico construído a partir da misantropia de Carlos Henrique pode encontrar alguns momentos fortes – como quando ele diz que o mundo não merece este filme – mas Os Dias com Ele está mais à vontade no desentendimento, quando o poder do pai sobre a filha e da cineasta sobre o seu personagem podem ser exacerbados e a montagem pode mediar este conflito de desejos.

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