Orestes, de Rodrigo Siqueira (Brasil, 2015)

janeiro 25, 2016 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Victor Guimarães

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Da necessidade das fricções
por Victor Guimarães

Um urubu sobrevoa o skyline de São Paulo ao som da música grega reconstruída magistralmente pelo Atrium Musicae de Madrid. A imponência da imagem-emblema e a suntuosidade da trilha sonora indicam as ambições altivas de Orestes. Trata-se de um filme que assume corajosamente uma tarefa imodesta: encontrar diálogos entre a memória do terrorismo de Estado durante a última ditadura civil-militar brasileira e a contemporaneidade do extermínio silencioso de jovens negros e pobres pelas mãos da polícia, tendo como pano de fundo a trilogia Orestéia de Ésquilo. Dividido em três partes (“A traição”, “A vingança” e “O julgamento”), o filme se serve de três dispositivos nucleares: depoimentos das vítimas da violência estatal; sessões de psicodrama que reúnem personagens vinculados a ambos os tempos históricos; e a simulação do julgamento de um caso ficcional que reenvia simultaneamente à tragédia grega e à biografia de uma das personagens centrais.

A Traição ou a história aberta

Em “A Traição”, Orestes encontra sua extraordinária protagonista: Ñasaindy Barrett de Araújo é filha dos militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) Soledad Barrett Viedma e José Maria Ferreira de Araújo (o Araribóia), que se conheceram num treinamento em Cuba e foram assassinados pelas forças da repressão na volta ao Brasil. A menina que sonhava em cursar Arqueologia foi obrigada a se tornar “arqueóloga de sua própria história” quando adulta, e agora junta os cacos de sua memória entre dezenas de fotografias mutiladas, diante das quais narra o enredo trágico dos últimos anos de sua mãe: ainda em Cuba, Soledad se envolve amorosamente com um outro militante brasileiro, sem saber que esse homem era o Cabo Anselmo, um infiltrado que seria o responsável por entregar as informações que levariam à emboscada que lhe tiraria a vida – e a do futuro filho do casal – em Pernambuco. Paralelamente à elaboração em cena da memória de Ñasaindy, um homem procura informações sobre o Cabo Anselmo na Internet e comenta as fotografias encontradas (na busca de imagens, o rosto do traidor aparece entre corpos assassinados, ex-guerrilheiros que se tornaram governantes, “e o Lobão no meio disso”).

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Nesses primeiros momentos, pulsam “os fragmentos de uma história em construção” (como anunciado nas cartelas iniciais do filme): das lacunas de um relato irremediavelmente incompleto que vibram na voz de Ñasaindy ao legado ainda nebuloso que se insinua nas associações entre figuras do passado e do presente na tela do computador, uma memória feita de cacos se atualiza em uma encenação e em uma montagem que apostam numa tessitura em aberto da história brasileira. A singularidade absoluta do enredo (“As únicas fotos dessa parte da minha infância provavelmente foram tiradas pelo Anselmo”, destaca Ñasaindy) e a economia de procedimentos marcam uma composição historiográfica promissora.

A Vingança ou a domesticação do dissenso

Após a cena de um enterro no Cemitério de Perus, a segunda parte (“A Vingança”) apresenta uma série de depoimentos de familiares de jovens assassinados pela polícia militar, todos em situações descritas – sempre na “língua dos policiais”, como definirá mais tarde um pai – como “resistência seguida de morte”. As descrições são breves, a montagem salta de uma casa a outra rapidamente, sem que haja tempo para que a dor inalienável de cada família possa se encarnar no corpo de quem fala. Em contraste com a expressividade do trabalho de memória que Ñasaindy realizava em cena, a montagem faz com que os testemunhos da segunda parte careçam de volume e densidade, transformando-os num acúmulo de informações desencarnadas.

Ao final da sequência de testemunhos, uma advogada descreve o método policial de falsificação sistemática das informações sobre as circunstâncias da morte dos jovens. Ela dá especial ênfase ao fato de que as histórias se repetem exatamente da mesma maneira em milhares de boletins de ocorrência, como um roteiro pré-traçado no qual a realidade é reiteradamente encaixada a cada nova ocorrência. É impossível não notar as ressonâncias dessa descrição ao notar o trabalho nessa sequência: a serialidade, a transformação do sujeito em estatística, da biografia em B.O, a “indiferença absoluta em relação ao corpo morto” são também traços de como o filme compõe conjuntos com as diferentes histórias, ao modo da coleção.

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Na antiga sede do DOI-CODI em São Paulo, um grupo de pessoas se reúne em círculo. São os participantes das sessões de psicodrama que o filme encenará em breve. Lá estão Ñasaindy, o ex-preso político José Roberto Michelazzo, diversos pais de jovens assassinados pela polícia, uma enfermeira que trabalha em um hospital na periferia e recebe cotidianamente feridos por “bala perdida”, entre outros que não sabemos quem são. Portando uma camiseta estampada com a frase “JUSTIÇA É O QUE SE BUSCA” está uma representante de uma instituição que “presta assistência a famílias vítimas da violência”. Defensora da pena de morte, crítica feroz dos ativistas dos direitos humanos e de um “código penal inteiro feito a favor da marginalidade”, Sandra é logo desenhada como a grande antagonista do filme. Diante do depoimento de Eliana, que teve o filho “morto por pessoas que usavam uma farda” e enterrado no cemitério de Perus como indigente, ela não hesita em perguntar: “Quantas vidas seu filho pode ter tirado sem que você saiba?”

Sandra quase nunca está sozinha em quadro. Ocupa frequentemente o centro da cena, mas está constantemente cercada por todos os lados por olhares de reprovação e meneios de cabeça. As bordas imantadas do enquadramento fazem com que sua performance nunca seja experimentada em sua frontalidade, e sim como um ato de fala imediata e sistematicamente deslegitimado pela mise en scène. Se para os outros há escuta, atenção, silêncio, tempo, seu discurso é constantemente interrompido, ridicularizado, desconstruído, seja pelos demais personagens – principalmente pelo mediador do psicodrama –, seja pela montagem, que não hesita em cortar bem no meio de sua argumentação.

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O ápice dessa modalidade de encenação acontece já no psicodrama, encenado em um teatro vazio. O mediador faz com que Sandra aponte o dedo para a cara de Eliana, enquanto ele atua como uma espécie de voz da consciência da ativista reacionária (que, constrangida pela situação, tem nos lábios um sorriso amarelo): “Como sabe que seu filho não matou alguém? Como sabe que seu filho não matou alguém?”, o homem repete. Sandra tenta desconstruir essa fala, mas uma voz off a repreende: “você já perguntou, quem tem que responder é ela (Eliana), não você”. Sandra tenta novamente sair do jogo, desvencilhar-se do drama e distanciar-se de seu papel numa atitude brechtiana: “Quem perguntou foi ele, não fui eu”. Mas o psicodrama não admite Brecht. A tentativa de impor um regime dramático em que cada atriz incorpora um papel pré-determinado, coeso e previsível continua, até que Sandra se vira e tenta nuançar o argumento que lhe querem impor, esbravejando contra o encenador. Ela fala sobre as famílias das vítimas do massacre de Realengo (essas mães cujo rosto nunca veremos), mas já está no fora-de-campo: a câmera se move para um lado e enquadra o olhar duro de Eliana, que, secundada pelos outros integrantes na borda do quadro escurecido, observa a performance solitária da militante.

A certa altura, outra mediadora do psicodrama chama atenção para o fato de que o discurso propagado por Sandra talvez seja hegemônico na esfera pública brasileira. Porém, no microcosmo criado pela dramaturgia de Orestes, sua fala não é apenas francamente minoritária, mas indigna de uma consideração séria por parte do espectador. O argumento esquiliano enunciado logo na primeira cartela do filme (a superação da Lei de Talião como um “marco civilizatório na cultura ocidental”) parece não valer quando uma fala é incômoda demais, incompatível demais com o todo. A princípio, todos merecem um olhar igualmente atento, mas alguns são mais iguais que os outros. A dramaturgia que constrói a personagem de Sandra não é a do encontro ou a da escuta, mas a da constatação peremptória de um discurso dominante e inaceitável, do qual ela é mera porta-voz. Uma vez que essa argumentação equivocada, repetitiva e enfadonha é responsável pelo genocídio cotidiano, a mise en scène está à vontade para deslegitimá-la com uma voz off, com as intervenções autoritárias do condutor do psicodrama e – o mais forte dos golpes – com o contracampo do olhar de uma vítima da rede assassina que o sustenta. Olho por olho, dente por dente.

O crescendo de tensão continua. Como um bicho acuado (“Eu estou me sentindo um monstro aqui”), Sandra chora (enquanto alguns riem), se exalta (“Num confronto entre policial e bandido, quem tem que morrer?”), um policial surge do grupo para contestá-la (“Tá falando aqui um policial: ninguém tem que morrer”), mas ela não desiste, até que o filme desiste dela, uma vez mais. Enquanto sua voz é novamente transformada em um balbucio sem sentido, a câmera se afasta da cena, salta aos ouvidos o ruído de um helicóptero que abafa as últimas falas e a montagem conjuga fragmentos do espaço do teatro (numa retórica que o aproxima do prédio do DOI-CODI). A seguir, o depoimento eloquente do policial expõe a lógica perversa do treinamento militar, parte importante do sistema atual. E quando Sandra finalmente aparece em quadro sozinha, entrevistada pelo diretor, só o que o filme consegue é expor pela última vez as inconsistências e a crueldade de seu discurso.

O tratamento que o filme reserva à figura de Sandra é o sintoma de um problema de base. Se lembramos de Notas para uma Oréstia africana (Appunti per un’Orestiade africana, 1970), recordaremos que Pasolini consagrava boa parte do filme a uma tarefa essencial para qualquer encenador: o casting. Os olhares-câmera dos cidadãos africanos nos desconcertam enquanto a voz over narra a procura entre eles de um Agamenon, um Pílades, uma Electra. A escalação de Sandra para o psicodrama em Orestes é claramente um problema de miscasting: Sandra não é uma antagonista real, mas uma marionete patética; não é um inimigo a temer ou a combater, mas uma mera correia de transmissão. Sua performance no filme, que teria a chance de nos fazer encarar frontalmente as entranhas do processo de produção da violência, só nos permite o riso e a troça. Orestes domestica o dissenso possível, torna-o palatável e inofensivo.

O Julgamento ou a anulação do ponto de vista

Orestes dos Santos, criança à época da última militar, testemunha o assassinato de sua mãe pelo pai, colaborador das forças da repressão. Décadas depois, reencontra o homem e, num acesso de fúria, o mata com as próprias mãos. Eis o caso fictício que dá ensejo à terceira parte de Orestes, na qual o filme se empenha em seu movimento mais ambicioso: produzir conexões entre um julgamento simulado do caso, as histórias das personagens reunidas no psicodrama e a biografia de Ñasaindy.

Embora as performances dos dois juristas escalados como promotor e advogado de defesa impressionem – eles estão entre os melhores atores do filme –, o julgamento é filmado e montado como um show qualquer na televisão: alternâncias recorrentes e injustificadas da escala dos planos, modulação de um ritmo genérico, contraplanos insossos dos espectadores/jurados inexpressivos. A multiplicação das câmeras e a dinamicidade da montagem deságuam num destino previsível: anulação completa de qualquer ponto de vista.

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Essa mesma ausência diante da necessidade da construção de um olhar é o que faz com que, na sequência seguinte, a história de Orestes dos Santos seja repetida sem paixão pela enfermeira (e pelos outros, que a corrigem), numa tentativa frustrada de fazer ressoar no espaço do psicodrama os ecos do julgamento. A lógica do acúmulo indiferenciado – inúmeras informações, muitos personagens dos quais sequer sabemos o nome, vários espaços, diversas camadas de sentido que se sobrepõem sem se contaminar efetivamente – perpassa todo o filme e dá o tom da montagem. A sequência final – a dramatização do encontro não realizado entre Ñasaindy e o Cabo Anselmo – recupera certa tensão criadora, faz conviver sentimentos contraditórios e dispara sentidos imprevistos, mas logo vem o último corte, antes que a cena exploda em sua multiplicidade latente.

“Este documentário ao mesmo tempo se apropria e se distancia da história de Orestes”, anunciava uma das cartelas iniciais. De mote fundamental, no entanto, a Orestéia se converte em obsessão que paira sobre o filme, mas não chega a incendiá-lo por dentro. Não há nem apropriação real – pois a frequência da tragédia não repercute produtivamente na cena, permanecendo ora como pano de fundo longínquo, ora como exterioridade que constrange artificialmente os encontros filmados – nem distância efetiva, pois a adesão ao texto é por demais imediata e pouco reflexiva. Se Notas para uma Oréstia africana permanece como uma obra fecunda é justamente porque Pasolini sabe que é impossível filmar Orestes na África sem fazer disso um enorme problema de mise en scène, e por isso adensa o filme com camadas e camadas de mediação que desautorizam qualquer voluntarismo ingênuo.

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Embora a coragem e o fôlego de Orestes ao buscar colocar tantos fluxos – temporais, narrativos, composicionais – em relação sejam inegáveis, é fundamental também reconhecer que falta depuração à empreitada. Para além de uma noção vaga de continuidade da violência – claro está que uma parte dos brasileiros ainda vive sob ditadura –, a conexão entre os tempos históricos é tão frouxa quanto o olhar que rege a cena em muitos momentos. A cada ano, o cinema brasileiro tem produzido dezenas de filmes que buscam enfrentar nossa imensa dívida histórica em relação à memória e ao presente do terrorismo de Estado, mas a dificuldade em passar do passado ao presente, do argumento à elaboração, do dispositivo à cena, em suma, em forjar verdadeiramente uma obra nessa fricção com a História é desoladora. É preciso reconhecer a parcela de responsabilidade do cinema – e da arte brasileira como um todo – diante da multiplicação contemporânea das Sandras e dos Lobões país afora. A nulidade é a regra e Orestes certamente se destaca no conjunto hegemônico, mas está longe de constituir a potência de uma exceção. E só as exceções são capazes de fazer justiça ao passado, intervir no presente e, quiçá, inventar um outro futuro.

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