O Uivo da Gaita, de Bruno Safadi (Brasil, 2013)

novembro 1, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

uivo

As prisioneiras do Rio
por Filipe Furtado

O Uivo da Gaita começa e termina com sequências de idílio amoroso na praia, a primeira como expressão de um desejo e a segunda como fato. Esta opção diz muito sobre o projeto deste novo longa do Bruno Safadi, afinal a praia é o espaço icônico natural do Rio de Janeiro e este é um filme todo assombrado pela presença e o mito da cidade, por uma relação tensa, mas fascinada por ela. Se o Rio é o elemento chave que aproxima ambos os longas do projeto Sonia Silk, deve-se dizer que as relações que eles estabelecem com a cidade são diferentes. Se em O Rio nos Pertence, contribuição de Ricardo Pretti ao projeto, a cidade surge como espaço das sombras, pronta para engolir e destruir as personagens, em O Uivo da Gaita cria-se uma relação de atração e repulsa muito mais ambígua com o espaço; no filme do Pretti a recusa a ele é completa – é um filme de horror sobre o Rio de Eduardo Paes que basicamente se relaciona com a cidade de forma abstrata –, enquanto aqui estamos diante de um risco maior: Safadi teme, mas não consegui evitar um flerte com um repositório de imagens e ideias sobre a cidade.

Há, primeiramente, a relação com Júlio Bressane – cineasta do sentimento carioca por excelência, justamente porque nos seus filmes a relação será sempre da ordem dos espaços, corpos e sensações – de quem O Uivo da Gaita busca se aproximar o tempo todo. É um processo de emulação irregular, já que é inevitável que o filme jamais extraia a mesma força dos seus espaços e modelos que o mestre encontrava. Nas suas sequências mais frágeis, especialmente no miolo, durante a longa visita de Leandra Leal ao casal formado por Mariana Ximenes e Jiddu Pinheiro, o filme sugere justamente um exercício em apropriação. Felizmente, esta apropriação é consciente o suficiente de seus limites para não se limitar num fetichismo cinéfilo.

De outro lado, assim como todo o projeto Sonia Silk, haverá a aproximação com o projeto da Belair (produtora fundada por Bressane e Rogerio Sganzerla) e com isso de uma ideia própria de cinema do Rio de Janeiro, que a produtora desejava. Há toda uma potência politica em tal aproximação, dada a forma como uma ideia de cinema do Rio foi pervertida pela associação Riofilme-Globo Filmes-Downtown e nela uma nefasta higienização da imagem, equivalente cinematográfico da ideia de espaço urbano da dupla Paes-Cabral, cuja ideologia por si sempre pediu uma politica da imagem que nosso cinema, no seu servilismo estatal, muito docilmente entregou. É preciso pensar em outras imagens, e isto o projeto de Safadi-Pretti tem o mérito inegável de propor. Se nos filmes da Belair buscava-se encenar um desespero local muito próprio, O Uivo da Gaita tenta retomá-lo pelo viés dos filmes posteriores de Bressane.

O filme de Safadi lança mão de uma série de signos de sofisticação e singeleza – um filme bonito, diriam alguns. O interessante aqui é o quanto tal beleza traz consigo um forte elemento opressor. Assim como o Rio das propagandas da Riofilme, as imagens de O Uivo da Gaita existem sempre num flerte constante com a asfixia. O mito do Rio de Janeiro oprime, torna difícil construir imagens próprias sobre a cidade. Num dos planos mais característicos do filme, Jiddu Pinheiro é enquadrado por uma fresta, um mero quadrado em meio ao plano mais amplo, enjaulado, apesar de ao ar livre. Se O Rio nos Pertence buscava combatê-lo pelo viés da recusa, num filme cujo drama se desenvolvia sempre dentro de apartamentos anódinos, O Uivo da Gaita abraça-o e vai para o corpo a corpo direto, não por acidente seu drama é quase sempre em espaços abertos que não escapam da aparência de cartão postal, além de o filme começar e terminar na praia.

Também não será acidente que uma das poucas sequências com diálogos do filme – a ausência de diálogos de um modo geral reforça o caráter opressor, nem sempre com os melhores resultados – seja justamente aquela em que Ximenes e Pinheiro ensaiam uma fuga daquele espaço. A fuga frustrada, imagem tão típica do cinema brasileiro, é retomada com bastante força aqui, devolvendo a O Uivo da Gaita o desespero político da Belair: é preciso escapar desta imagem do Rio, mas o filme sabe que tal fuga será ela própria condenada.

Pois O Uivo da Gaita sugere existir num aquário, com a pretensa pureza do seu triângulo amoroso gritando por uma contaminação que só surge pelo excesso. A sequência em que Pinheiro se descobre abandonado, justamente uma das mais fortes do filme, com  sua fuga abortada torna concreto o drama de representação que o filme tateava até ali. Tudo em O Uivo da Gaita é da ordem das imagens e do peso de toda uma história de representação que elas trazem consigo, e sua maior força é encontrada justamente nestes momentos em que o filme consegue tirá-las do eixo e sugerir uma interrupção no seu ciclo natural, em que consegue resignificá-las e apontar uma necessidade de repensar a representação da cidade.

É uma das escolhas mais acertadas do filme retomar a praia, o espaço da liberdade natural do cinema brasileiro, como momento final desta fuga frustrada. Se a fuga é impossível, se a procura por um sublime está condenada sempre ao mero adereço, faz sentido retomar a praia como o terreno de uma vitória vazia. O plano politico mais agressivo e forte de todo o projeto Sonia Silk é o momento no qual Leal e Ximenes tem seu idílio no bote, e a imagem cartão postal da cidade chega até nós com a luz estourada. O Rio idílico é negado pela sublimação da própria beleza, tão impregnada de si mesma que chega ao outro lado e vira uma agressão. O Uivo da Gaita é menos um romance que a história de um afogamento; sua encenação revela como uma apreensão poética da cidade é impossível hoje. Não há saída possível em meio ao mito do Rio. Resta somente reencenar em desespero esta fuga rumo à prisão.

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