O Mestre e o Divino, de Tiago Campos (Brasil, 2013)

setembro 21, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

omestreeodivino

A troca infinita
por Victor Guimarães

“Os sujeitos e os objetos são antes de mais nada efeitos das relações em que estão localizados e assim se definem, redefinem, se produzem e se destroem na medida em que as relações que os constituem mudam”.

Eduardo Viveiros de Castro

“Para estar à medida do mundo, a escritura resiste ao recorte do mundo em mundos exclusivos”.

Jean-Luc Nancy

No centro da construção fílmica de O Mestre e o Divino, está uma disputa em torno das imagens. O interesse pelos registros que o missionário alemão Adalbert Heide tem produzido entre os xavante, desde os anos 1950, é o que move a procura por explorar a relação entre o padre – chamado de mestre pelos índios – e o cineasta Divino Tserewahú, que conviveu com Adalbert desde criança, começou a realizar seus filmes nas oficinas do projeto Vídeo nas Aldeias e a montá-los com a ajuda de Tiago Campos, diretor e personagem igualmente central neste filme. Essa relação multifacetada – que contém elementos tão diversos como a admiração mútua, o conflito entre egos e as discordâncias acerca da história – entrelaça as biografias dos protagonistas, convoca aspectos mais amplos da catequização indígena no país, mas acontece fortemente no terreno das imagens.

Nos arquivos que o filme convoca e nas conversas em torno deles, que ocupam a maior parte da duração, é possível distinguir (pelo menos) dois modos de pensar a experiência indígena, duas políticas da imagem: nos filmes de Heide, emerge um gosto pelos encantos da natureza selvagem, um estilo marcadamente épico – regado a doces melodias andinas e tributário tanto dos documentários televisivos que materializam o olhar estrangeiro sobre os índios quanto do Western, mas que faz pensar também em Herzog – e uma enunciação autocentrada, que tem a figura do realizador como protagonista das ações; nos de Divino, salta aos olhos um interesse pela oralidade manifesta nas narrativas dos mais velhos – partilhada por outros cineastas surgidos no contexto do VNA, como Takumã Kuikuro, Ariel Ortega e Patrícia Ferreira –, uma mise en scène devotada à presença dos corpos (como no belíssimo Pi’õ nhitsi – Mulheres Xavante sem Nome, de 2009) e uma montagem que prima pela integridade do registro (como percebemos na sequência em que o realizador ensina o processo de edição a outros rapazes da aldeia). São duas políticas do olhar sempre mediadas por uma terceira, que é a do filme, e que se constitui, plano a plano, frente ao espectador: ao dar a ver não apenas os arquivos, mas o trabalho cotidiano de cada um dos realizadores e as conversas em torno das filmagens de um e do outro, a enunciação de O Mestre e o Divino não hesita em fazer escolhas, em se posicionar diante daquilo que vemos e ouvimos, em se assumir como agente do processo que faz com que essas imagens existam no filme.

Mas se esses olhares diferem, há também um regime de trocas tão intenso que impede que as fronteiras possam ser delimitadas com precisão, tanto os limites entre um modo de olhar e outro (as imagens são muito diferentes, mas também são muito parecidas) quanto as fronteiras entre os três personagens em cena. De forma próxima às teorizações de Eduardo Viveiros de Castro em torno do perspectivismo ameríndio, a relação parece sempre primeira, sempre anterior à própria constituição dos sujeitos (no caso do filme, anterior à construção dos diferentes personagens que vemos na tela). Do mesmo modo em que, nas cosmologias ameríndias, não há (como na ocidental) uma natureza única e diferentes culturas – e sim relações que produzem naturezas múltiplas, que só existem a partir dos contextos relacionais em que estão inseridas – em O Mestre e o Divino não há nenhuma construção subjetiva coesa, e a natureza dos personagens parece se remodelar constantemente, a depender dos pontos de vista que variam conforme o filme acontece.

Nessa dramaturgia perspectivista (com o pedido de perdão antecipado pela construção conceitual selvagem), há uma ininterrupta redefinição dos papéis. Se, em um primeiro momento, o mestre nos é apresentado como um religioso autoritário e ególatra, o desenrolar do filme revela outras facetas, como a feição aventureira do jovem missionário e o mergulho apaixonado no convívio com os índios (que chega a lhe render um nome xavante, Tsa Amri). Do mesmo modo, Divino parece inicialmente tímido e receoso quanto a assumir suas diferenças com Adalbert, mas logo se entrega ao filme e chega a questioná-lo em cena. Há ainda uma contínua reconfiguração do personagem de Tiago (que se confunde, como não poderia deixar de ser, com a enunciação do filme): por vezes, travamos contato com um cineasta engajado na tarefa de explorar as contradições dessa história (por meio das provocações lançadas aos outros dois e do uso constante da voz over); noutros momentos, esse ímpeto questionador recua, e o realizador permanece atento à densidade do que não é dito.

Adesão e crítica, proximidade e distanciamento se alternam e se multiplicam enquanto perspectivas dramatúrgicas e posturas de enunciação. Se o filme nos dá a impressão, por vezes, de não ter certeza sobre aquilo que filma, o realizador tampouco deixa de se posicionar, ou de se implicar no jogo. O traço mais significativo do filme é, justamente, a convicção de que não há resolução possível nesse regime de trocas e reconfigurações: o gesto dramatúrgico efetuado pela montagem não conduz os personagens em direção a um telos, não constrói um arco dramático rumo a um lugar definitivo. Os personagens e a enunciação continuarão a se transformar, sem que nunca possamos produzir um juízo definitivo sobre eles. Na narrativa inevitavelmente esburacada de O Mestre e o Divino, as lacunas da história não serão preenchidas, mas permanecerão sempre como uma força atuante – e nunca escamoteada – na cena.

O fluxo entre as maneiras de ver materializadas nas imagens também é intenso: se, em um primeiro momento, o filme parece ensaiar uma contraposição muito rasteira entre a épica totalizante dos registros do mestre – marcada por uma gestão deliberada dos elementos da cena (expressa na decisão de não filmar o lixo na aldeia) – e a construção mais realista, mais próxima do cotidiano, das imagens de Divino, essa separação é logo abandonada, como percebemos na sequência em que, ao preparar uma entrevista, o cineasta xavante pede a um parente que tire a camisa e esconda as roupas que pendem do varal. A questão lançada por Adalbert (a realidade mostrada em um filme é o que é, ou o que deve ser?) encontra eco em um último gesto reflexivo, quando Tiago dirige uma cena em que Divino prepara um churrasco (“desliga, vai lá na fogueira e volta”). Qualquer ideal de inocência cai por terra, e a natureza decididamente impura do gesto cinematográfico nos confronta mais uma vez.

A certa altura, as camadas de significação passam a ser não apenas agenciadas pela montagem, e começam a se sedimentar em cada imagem. A multiplicidade do filme produz verdadeiros planos-palimpsesto, como a missa rezada em xavante por Adalbert (à qual Divino ouve atentamente) ou a caminhada dos dois ao final, na saída do museu: nesse pequeno percurso, a cumplicidade não neutraliza as diferenças, a amizade e o conflito se expõem e se desmedem, o sentido circula e o espectador não encontra pouso certeiro. Em tempos de tantas certezas dissimuladas por dúvidas inconsistentes, um desabrigo real pode ser uma experiência e tanto.

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