O Lobo Atrás da Porta, de Fernando Coimbra (Brasil, 2013)

outubro 28, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

oloboatrasdaporta

Revelando a verdade
por Raul Arthuso

A ficção de O Lobo Atrás da Porta é calcada em um dispositivo tão forte quanto demodé: a revelação da verdade. Em uma delegacia de periferia qualquer, as personagens dão depoimentos sobre o sequestro da filha pequena de um casal proletário. Não se trata propriamente de uma verdade que será descoberta ou um jogo com a ideia de pontos de vista como inicialmente sugere a construção dramática, pois um depoimento em particular tomará quase metade do filme e tem importância maior que os outros ao desvelar toda a verdade, como se a especulação até ali não passasse de um colorido para que esta verdade pudesse ter lastro (é plausível) e peso (ela será impactante).

Essa crença na “verdade” que pode ser contada diz algumas coisas sobre o projeto cinematográfico do filme. Como parte do cinema brasileiro de conquista de mercado que se leva a sério, O Lobo Atrás da Porta é feito sobre um tripé reconhecível: o peso dado ao acabamento do roteiro, clareza narrativa e uma perceptível preocupação com a autenticidade por via da técnica. É um projeto cinematográfico cuja produtora O2 se mostrou expoente e engajadora – e que a Gullane Filmes, produtora deste filme, parece ser a seguidora mais fiel -, em filmes como O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, Vips, À Deriva, As Melhores Coisas do Mundo, reverberando no grande sucesso de público dos dois Tropa de Elite. Não se trata apenas de um projeto de comunicação com o público, pois ele engloba não abrir mão de certos predicados estéticos que refinam a aparência dos filmes, em oposição a um produto banalizado qualquer. Há uma qualidade como ponto de partida que o diferencia. É, vamos dizer assim, um naturalismo made in Brazil, no qual é preciso ser autêntico e, antes de tudo, convencer.

Então, há um rigor inicial bastante sensível, inteiramente voltado para nos fazer crer nas figuras proletárias retratadas na história e na pele dos atores. Isso se dá primordialmente pelo detalhismo dos elementos de composição cenográfica (que pouco aparecem, mas contaminam os longos planos do filme) e pelo uso consciente dos planos de passagem, localizando a ação na zona periférica do Rio de Janeiro. O primeiro plano do filme é de uma consciência raramente encontrada em Cao Hamburger e Heitor Dhalia: um plano geral mostra o Cristo Redentor pequeno no canto do quadro, meio de costas para a câmera, indicando, através desse cartão postal, que a ação se passa num lugar não tão visado pelo cinema que vende a cidade como turismo.

Talvez seja essa esperteza narrativa um diferencial de O Lobo Atrás da Porta em relação a outros exemplares desse naturalismo à brasileira. Há um rigor que Fernando Coimbra consegue imprimir que raramente se encontra num filme com esse tamanho de produção. Coimbra filma com muitos planos longos rigorosíssimos, nos quais as marcações dos diálogos parecem apagar-se, mantendo a fluidez da narrativa. O filme nunca se engessa em sua vocação de grandeza técnica, nem se banaliza por completo para “comunicar”. O Lobo Atrás da Porta parece o exemplar de redenção desse projeto de cinema de qualidade, ainda de muito discurso ideológico e poucos frutos enquanto cinema.

Claro que esse naturalismo mostra seus limites. Os diálogos são excessivamente construídos, com o evidente uso homeopático de piadas para incorporar uma “autenticidade” ao retrato das figuras proletárias. Essa tipificação do autêntico é especialmente visível na figura do delegado, interpretado por Juliano Cazarré, cujas falas partem para um clichê de prosódia que mora entre o policial de Tropa de Elite e o Ellerby (Alec Baldwin) de Os Infiltrados: o policial durão, chucro, boçal, mas capaz de fazer um monólogo consciente sobre o tempo de esfriar do café e a atuação das ONGs de direitos humanos.

Há aí, como afirmado por Adolfo Gomes em texto na Contracampo sobre Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios, um ruído: “Tudo precisa ser particularizado pelo exótico. Imagina-se que o interesse surja irremediavelmente por aquilo que nos separa do outro, não nos aproxima. Tal estranhamento, no entanto, não gera sequer a consciência bretchiana da representação, ao contrário, aliena pelo conforto do diagnóstico: as pessoas são estranhas mesmo e a realidade imutável. Nada podemos fazer”.

O Lobo Atrás da Porta arma-se em torno de “contar a verdade”, compor um universo de autenticidade técnica e controle que reverbera no próprio rigor da mise en scène. Como em todo naturalismo, seja ele o cinema clássico americano ou esse à brasileira, O Lobo Atrás da Porta é feito de efeitos de profundidade, pelo desejo de ver mais para alcançar a revelação de uma verdade – que, no melhor que o cinema já produziu, é uma verdade transcendente dos limites da tela. Aqui, por outro lado é literal: o sucesso do filme depende de cumprir a promessa de revelar “o segredo atrás da porta”. É difícil dizer se reside aí um grande grau de inocência ou uma esperteza sem tamanho.

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