O Concurso, de Pedro Vasconcelos (Brasil, 2013)

setembro 2, 2013 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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De hora marcada
por Andrea Ormond

Machado de Assis bateu ponto na Secretaria de Agricultura. Carlos Drummond de Andrade instalou-se no Ministério da Educação. Peguem um guia Rex da antiga capital federal – amarelado pela nicotina do defunto cigarro –, e vejam que o Ministério era vizinho do INCE, onde também parou Humberto Mauro. Todos eles dormiram alguma vez na corda bamba entre o lirismo extremo (a arte) e a rotina mais previsível (a burocracia). Imaginem, por exemplo, o francês Joris-Karl Huysman escrevendo as missas negras de Lá-Bas, nos talonários do Ministério do Interior. Era a glória, a subversão plena, o cinismo absoluto.

Criaturas estatais podem ser “comissionadas”, “servidoras”, “membros de Poder”. Com ou sem concurso público. Mas esse gorducho detalhe não importa. Aos olhos dos espectadores, elas estão mais perto de realizarem o sonho da casa própria, do gabinete com ar-condicionado, da viagem anual à Europa, do Toblerone de quarenta e cinco quilates, comprado com esforço civilizatório no Duty Free Shopping. Barnabé mirim ou barnabé grande moram dentro do “Estado” e, por isto, recebem as batatas. Aos vencedores, as batatas.

Em 2013, o cinema brasileiro resolveu meter o malho no tema. Rogério Carlos (Fábio Porchat), Caio (Danton Mello), Freitas (Anderson Di Rizzi) e Bernardo (Rodrigo Pandolfo) disputam uma única vaga de juiz federal, no Rio de Janeiro. O Concurso (2013) nos chega em uma fase especial. Vamos entendê-la: após o reinado de terror das sociochanchadas, na primeira década do século XXI, pipocam uma série de comédias. São crônicas de costumes, com um modelo envernizado por mocinhos e mocinhas de plantão. Saem o psitacismo sociológico, as desculpas sobre o “fosso social”. Saem os jovens de classe média travestidos de José Lewgoy, o eterno vilão da Atlântida. Ao invés de feiosos, eram os vilões bonitinhos. Tolos e manipuláveis. Beijavam o ar em duplos mortais carpados, nas alturas de um Baloubet du Rouet, ao ouvirem os Antônios Conselheiros dos morros ou das periferias – vide Era Uma Vez (2008).

No atual cinema da Barra da Tijuca, temos a Miami falsa, instalada no coração dos nossos dias. De Pernas Para o Ar, volumes 1 e 2, colocaram no trono a mulher esquizoide, oxigenada e falsa feliz. Alice (Ingrid Guimarães) dá uma banana à responsabilidade social, mas não será difícil encontrá-la no filme 3, palestrando sobre inhames orgânicos e projetos de inclusão. O Princípe (2002), de Ugo Giorgetti, denunciava essa quizília de modo amargo e no universo paulistano. Já Alice troca a elucubração pelo suposto prazer sexual. Enquanto isso, O Concurso troca as repartições ocres, o apiário da Administração Pública, por sanatórios puros, embalsamados em spray de alfazema.

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José Maria, o funcionário aposentado de Viagem Aos Seios de Duília, era praticamente um Quasímodo da Avenida Rio Branco. Vivia dos bondes e do cafezinho requentado com broa de milho. Aníbal Machado (promotor público) escreveu o conto, Carlos Hugo Christensen adaptou-o para o cinema em 1964. Tínhamos então a imagem de um José que apenas conseguia ser rei ao entrar no escritório e vociferar a inutilidade de sua existência. Da porta para fora, tornava-se invisível. Um nerd, antes da religião adventista dos Chewbaccas e fiéis Jedis.

O Concurso do diretor Pedro Vasconcelos mostra rapagões de smartphones. Quase os vejo recitando as estrofes do cantor Naldo, chorando em delírio cívico, absolvidos por um misto sensorial de funk, lambaeróbica e pegação a granel. Obviamente, seres do gênero não se encaixam nos lugares em que se esgueirava o José Maria. A manjedoura é outra. Animadinha, trepidante – e imperial, quando necessário. Na cenografia, mais uma vez o antigo Ministério da Fazenda dá as caras. Em Duília, era o celeiro de todo o grupo. No Concurso, é a fachada que simula as externas de um tribunal. Tribunal equivale, portanto, a linha retas, pedras colossais, fascistóides, inspiradas nos humores do Il Duce Getúlio Vargas, que inaugurou o prédio. Eis a grande angular do problema: o tribunal e o mundo em que os personagens querem entrar são imagens pavoneadas do Poder – grandes e inacessíveis. E, claro, ali acontecerá a última prova do concurso. Qual deles ganhará: o nordestino ingênuo, o carioca fanfarrão, o gay pelotense, o caipira virgem?

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Com bailes de traficantes anões e sacrifícios de gato preto, O Concurso leva os candidatos pelo Rio de Janeiro. A coxice de tudo impregna e ficamos numa boa, vendo o albergue na Lapa ou o pelotense sair do armário. Um dia assistiremos (e não demora) a passeatas embrulhadas em grande elenco e em comovidas teses de autoajuda. É a lógica da absorção. Pedro Vasconcelos e equipe absorvem, por exemplo, o núcleo das “celebridades”. Escalam o comediante Fábio Porchat no papel de gay, o que sempre rende boas deixas, desde os tempos do teatro de revista e na estrada do cinema afora. Percebam os olhinhos revirados de Antonio Spina, nos anos 1950. E, quando estiverem acompanhando as loucuras do caipira Bernardo e da tal Martinha Pinel (Sabrina Sato), mirem-se naquelas mulheres do carnaval high tech soteropolitano. Estivessem em Salvador, aconteceriam micaretas e conversas filosóficas sobre o objetivo da vida. Sato é a versão contemporânea da concorrente a ser odiada. Famosa, popularesca. Como sorri, torna ainda pior o Círio de Nazaré da concorrência. O filme aproveita o case completo de Sabrina, de cabo a rabo, para o amável público.

Estamos na virada espectral, meus amigos. A cada passo, homens e mulheres vêem-se enganchados com fantasmas, conspiradores da revolução nas festas de debutantes, enterros, crismas, calças apertadas e demais delírios do cotidiano. Talvez surjam deles o Evoé, a divisão do Mar Vermelho no cinema do Brasil. Há fatias consideráveis de mercado flanando e misturam-se com a pregação ideológica de um país que pelo menos está voltando a se olhar na tela, com todas as idiotices possíveis e agora sem tantos slogans sócio-econômicos. Já que grande parte da comunicação no Brasil tem começado no riso, a comédia serve de estímulo ao bate-papo qualquer. Ri-se de tudo. Ri-se até mesmo por não se entender do que se ri. A gargalhada, porém, dura uma fração de segundos e, no momento seguinte retornam as armadilhas mais sofridas possíveis, as neuroses da autocontemplação, o controle do bilau alheio. Esta vem sendo a guinada das novas comédias. Pelo jeito, o prazer tem hora marcada (e bastante breve) de duração.

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