O Bacanal do Diabo e Outras Fitas Proibidas de Ivan Cardoso, de Ivan Cardoso (Brasil, 2013)

outubro 28, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

bacanal

Retrato de um artista diante do morto
por Raul Arthuso

Na introdução de seu livro Brasil em Tempo de Cinema, Jean-Claude Bernardet discorre sobre a tônica da história do cinema brasileiro ser fundamentalmente o caso isolado, a falta da construção e desenvolvimento de uma obra contínua: “Cada filme representa uma experiência que não frutificou. As experiências, tanto técnicas quanto de produção ou de expressão, em vez de se acumularem e enriquecerem, deperecem, e cada diretor tem de começar mais ou menos do zero”. Anos depois, em seu ensaio sobre a história do cinema brasileiro, Paulo Emílio Salles Gomes vai estruturá-la em torno de ciclos, destacando assim o caráter de interrupção ao qual estávamos – ou estamos? – fadados.

Um pequeno filme como O Bacanal do Diabo…, de Ivan Cardoso, nos lembra dessa “maldição histórica”. Transformando em expressão uma contingência, ele carrega, como indica o título, a experiência da interrupção em ssua própria forma e tenta contornar essa frustração com violência.

O Bacanal do Diabo… transita entre o filme de episódios e um catado de memórias, já que é composto por pequenos “troços” filmados por Cardoso por mais de trinta anos. Tirados do baú, a desigualdade tanto material (VHS, Super-8, 16mm, MiniDV) quanto temática das imagens é contornada com um esforço de compor mini estórias, retrabalhadas como trailers de filmes nunca apresentados que compõem, num estilo debochado próprio do diretor, um fluxo ininterrupto, espécie de mixtape de imagens interditadas pela presença do sexo, da precariedade, mas principalmente pela recusa de render-se a um ideal de perfeição.

O conceito de mixtape cabe como uma luva, pois, assim como a série de faixas musicais recolhidas numa fita só – praticada principalmente pelos rappers, numa forma de divulgação de sua obra à margem do sistema – O Bacanal do Diabo… reforça as partes, as mudanças de tom e seu desequilíbrio. O filme se forma, assim, de faixas em torno do leitmotif do falso trailer, do anúncio de atrações, do filme que ainda não o é e nunca poderá sê-lo, pois natimorto.

Como o famoso livro de Macedônio Fernandez, O Bacanal do Diabo… é como uma coleção de prólogos que, enquanto prepara o verdadeiro filme, adia sua chegada até a implosão e o eterno devir de um prólogo em outro. Após os créditos finais, como se fosse o filme anunciado, começa a mais longa das fitas, A Luz de Ivan Cardoso, trecho mais abstrato, no qual o rastro das luzes artificiais pela noite compõem um balé de luzes junto com o acompanhamento musical. Contudo, até esse verdadeiro filme não acontece, não chega a estruturar-se como filme, interrompido por uma força maior desconhecida (a história? a maldição? o acaso? ou só uma opção arbitrária?)

Essa interrupção sem sentido dá o tom de profunda tristeza do filme, por mais que O Bacanal do Diabo… use o desbunde como arma. Seu humor corrossivo – uma mulher mijando sobre capas de discos famosos; Claudia Ohana sentando num prato de leite; as corruptelas com os slogans do governo federal e do ministério da Cultura – é triste, rancoroso. A abertura desse baú audiovisual libera junto o ressentimento acumulado pelas impossibilidades e interrupções que vitimam o processo artístico.

Nesse sentido, O Bacanal do Diabo… é um atestado de óbito. Ivan Cardoso nunca foi um cineasta do “centro”, por mais que recuse a pecha de “Marginal” e, por seu posicionamento político e estético, sempre teve dificuldades de produção e circulação de suas obras. A violência de representar as interdições de sua experiências – ou, pelo menos aqui, apresentá-las como iniciativas “proibidas”, ou seja, interrompidas, impossibilitadas, destituídas daquilo que as faria propriamente existir: a exibição – é uma forma de lidar com as frustrações que atormentam o cineasta brasileiro. Ivan Cardoso não é o primeiro, nem será o último. O óbito aqui é a de uma idéia: a resposta à violência contra o artista – artística, politica e profissionalmente – pode ser dada na mesma moeda. O Bacanal do Diabo… teima em aceitar o lugar ao qual foi relegado.

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