Noites de Reis, de Vinícius Reis (Brasil, 2012)

julho 15, 2013 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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Fora de centro
por Andrea Ormond

Chegamos ao segundo longa-metragem de Vinícius Reis, aguardado desde Praça Saens Peña, que  jaz há cinco anos (2008). Na febril aventura, o espectador balança a cabeça, estende o dedo indicador em um leve giro e se gaba: “Estou certo!” Acredita que matou a charada de Noites de Reis, tal e qual um ladino Conan Doyle. É assim que prossegue: “Olhem lá, não vêem? Igual ao outro! O diretor repetiu o tripé de marido-mulher-e-filha”. Em Praça Saens Peña, um professor é casado com uma lojista bonitona e concentram a prole na filha única, adolescente. O filme vibra em vários trechos, captura uma fração da alma carioca e entra, com gosto, no rol dos melhores filmes brasileiros da primeira década do século XXI. Talvez pelo conforto adquirido em Praça Saens Peña ou até mesmo pela fixação de repetir um retrato familiar com duas bacantes e um homem, a questão é que nas Noites de Reis vemos Dora (Bianca Byington), Jorge (Enrique Díaz) e Júlia (Raquel Bonfante). Mãe, pai e filha que se aguentam. Agora os três carregam atrás de si um cadáver, ausente aos nossos olhos: outro filho morreu. É sobre ele o filme. O morto não aparece, mas a existência anterior sussurra tragédias. Está invisível no plein-air de Paraty, como uma Sheherazade a quem se ouve no iminente silêncio.

A Paraty de Noites de Reis esqueceu o famoso ciclo dos anos 1970, em que pontificava Nelson Pereira do Santos. Parecendo uma locação guardada por mil séculos, a cidade era o prato cheio de Como Era Gostoso o Meu Francês (1970) e Quem É Beta? (1972). Em Noites de Reis, não devemos esperar Villegagnon e as alegorias sobre os problemas nacionais – àquela altura, corriam soltos Garrastazu Médici e o AI-5. Paraty jogou ao chão a tule de vestal. É agora um terreno sem papoulas, despido de todos os paraísos artificiais. Uma cidadela interiorizada, refúgio da família de Dora, que já morava por lá quando o filho morre. A cidade e a casa em que vivem são dois eixos da narrativa. Tanto servem de cemitério – o garoto morreu dentro de um dos quartos – quanto de pacato lar – ajeitado, obediente às normas do IPHAN e aceito pelo gosto médio geral.

Vinícius Reis escolheu um grupo fora de centro. Passa batido pelo cerco cosmopolita, que dá as caras, o corpo e a alma de Praça Saens Peña. Adotando o roteiro de Rita Toledo, optou por uma família que parece desde sempre isolada, alheia, voltada a um mundo particular. A fantasmagoria de Paraty ajuda nesse quesito. Idem o folclore da Folia de Reis, que vara as madrugadas na cidade e se interliga a outro arquétipo maior: o Natal. Com as portas abertas, as casas recebem o corso, que mistura estandartes, músicos e recitadores, em um típico ritual quinhentista. Noites de Reis, que é contenção até dizer chega, se apropria da Folia como um candeeiro, cuspidor de luzes na trama. Mais do que isto, a Folia revela um subterfúgio: estamos na época do Natal, do nascimento de um bebê, e ao mesmo tempo falamos da morte de outro. De um comezinho, do tipo que devia mastigar Cheetos e que nasceu, vigiu e morreu, em desolação. O mês de Dezembro parece ter sido pinçado no calendário por outros motivos. Dora pode entrar no recesso da escola em que dá aulas e curtir a fossa de não ter nem filho, nem marido. Jorge abandonou o barco, após a morte do garoto. Voltará no meio da história, como o bom e velho elemento desestabilizador, clássico nas rodas narrativas.

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Curiosamente, Jorge encarna uma vez mais a figura do artista, também anteriormente entregue ao homem do casal. Jorge (Enrique Díaz) se assemelha por um triz com o Paulo (Chico Diaz) de 2009. Toca rabeca, enquanto Paulo escreve um livro – por sinal, os atores são irmãos. No entanto, a bonomia de Paulo se esboroa na angústia forçada de Jorge. “Sempre foi esquisito”, diz a empregada. A maldição ronda o casebre. Quanto a Dora, até pode-se perceber o esforço de fazê-la acuada pela saudade do filho e por alguns tremores sexuais. Quarentona e bela, acaba dormindo com um restaurador (Flávio Bauraqui), acreditando, talvez, que o amante a faça esquecer da inveja que sente de um casal amigo. Interessante que, justamente no dia do pós-coito, Paulo ressurge. Como um Ulisses depressivo, testando a fidelidade da arfante Penélope.

Na sanha de transmitir as frustrações de Dora e de Paulo – ênfase brutal de Noites de Reis –, o filme se acomoda e transforma Júlia em roommate. Uma observadora privilegiada, que tenta se encaixar canhestramente no grupo. É absolutamente impossível que a garota de cerca de doze anos de idade encare com tanta fidalguia o rosário das mais sórdidas provações: irmão morto, mãe distante, pai fujão. Júlia ri, experimenta o vestido da mãe, quer provar a todos nós que os hormônios e a entrada na vida adolescente se aproximam. Mas descendo aos infernos – que são a matéria de quase toda boa arte –, pergunta-se: qual seria o verdadeiro ódio de Júlia, ao encarnar a mártir de tantas tragédias? Como ter paciência para ver a mãe “arrumar o quarto do filho que já morreu” e peitar as tonturas paranóides do pai? Por que o filme se perde nos subterfúgios e na excessiva interiorização para deslocá-la, em breves sopros, na massa redentora do folclore? A certa altura, compreendemos por que Paulo se atira de um bote e começa a nadar para o sem fim. Faríamos o mesmo, se escutássemos a cantilena de uma menina e de uma história que se perde em maneirismos, na estilização do mar e da loucura – Paulo quase finca os dois pés na psicose.

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A convivência entre mãe e filha sairia, com folgas, da área dos coadjuvantes e poderia ter tomado a cena. Coincidência ou não, Tormenta (1982), de Umberto Molo, filme de estréia de Bianca Byington, centrava-se no isolamento das duas em uma ilha distante. O pai era o vulto ideal, preso nas lembranças do passado. Navegando nas influências de Eugene O’Neill e das fitas da Metro, Tormenta aspirava a algo maior: à análise blasé dos costumes, ao tal do Édipo e às lições moralizantes que vêm no comboio. Enquanto cinema, não ganhou o cosmos e permaneceu nas ilusões. Noites de Reis parte da nítida estratégia de tornar central aquele que não se vê e que apenas é. O filho impõe as sensações dos personagens e, sobretudo, a capacidade de destruir – e depois, quem sabe, reconstruir – uma família. Consequentemente, o filme precisou mexer em vários núcleos, fazendo-o superficial no todo. Noites de Reis deixou-nos o gosto da entressafra, da certeza de que o diretor guarda tutano no bolso e dele tomará as rédeas, com mais calma.

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