Não Pare na Pista – A Melhor História de Paulo Coelho, de Daniel Augusto (Brasil, 2014)

julho 26, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

naoparenapista1

Gênese do herói
Marcelo Miranda (colaboração especial)

Retratar na ficção uma figura hipermidiatizada como o escritor Paulo Coelho exige uma série de procedimentos e escolhas que invariavelmente vão afetar o resultado final na essência mais elementar. Não é todo dia que um cineasta pega um ícone (pensemos em Gus Van Sant e seu fantasmagórico Kurt Cobain de Últimos Dias) e o transfigura para um outro plano de ideias e ações, sem maiores compromissos com a trajetória “real” e biográfica do sujeito em questão. Torça-se o nariz ou não, Paulo Coelho é um mito artístico a atravessar a história da cultura (e contracultura) brasileira e ainda hoje uma espécie de assombração da intellingentsia cuja mera menção tende a vir carregada de deboches e opiniões das mais variadas. Uma produção ambiciosa como a de Não Pare na Pista – A Melhor História de Paulo Coelhocarrega consigo, portanto, o compromisso não-assinado de dialogar com os fãs do biografado, já cooptados de antemão, e com os detratores, naturalmente desconfiados de qualquer tom a ser adotado pelo filme.

O longa de Daniel Augusto trafega nessas duas direções e opta pelo caminho mais trôpego: narrar dezenas de episódios marcantes na vida pessoal do personagem, aqueles momentos, da juventude à maturidade, nos quais ele andou rumo àquilo que se tornou. Trata-se abertamente da trajetória do oprimido e injustiçado que a tudo e todos vence via seus próprios esforços e atinge o mais alto nível de superação e sucesso, algo muito próximo das narrativas hollywoodianas mais tradicionais. O eixo condutor de Não Pare na Pista reforça o caráter messiânico do personagem: nas primeiras cenas do filme, vemos um Paulo ainda jovem, prestes a se matar asfixiado com gás de cozinha até interromper o ato ao aparentemente ter visões de seu futuro; pouco depois, surge um Paulo já envelhecido, em 2013, recém-saído de uma cirurgia no coração e decidido a repetir o caminho de Santiago de Compostela que, no passado, levou-o a compreender o seu próprio estar-no-mundo. As idas e vindas temporais buscam cobrir as motivações daquele homem já experiente e consciente, e tudo que é apresentado teoricamente deverá se fechar na caminhada pomposa que ele faz ao final.

Em três tempos narrativos distintos (o filme parece ter obsessão em localizar, via cartelas informativas, cada um dos períodos históricos a cada vez que eles se reconectam à narração, mesmo já tendo sido apresentados antes), o enredo entrelaça diversos insights protagonizados por Paulo Coelho que irão levá-lo a ser “o escritor vivo mais traduzido que Shakespeare”, conforme nos adverte um outro letreiro, já no desfecho. Há uma aparente busca por legitimação do personagem Paulo Coelho enquanto herói que enfrenta vilões terríveis para chegar ao topo. Entre as adversidades, surgem psiquiatras e editores que o desestimulam no ofício de escrever (“Você acha mesmo que alguém vai se interessar por essas coisas que você escreve?” é uma pergunta feita duas vezes em momentos variados do filme), médicos que o submetem ao tratamento de eletrochoque, bullying dos amigos e das mães de garotas bonitas e principalmente a figura do pai, conservador e opressor. Este embate ironicamente aproxima o filme dos escritos de Shakespeare, porém em chaves bem mais simplistas, com o conflito do filho rebelde contra a opulência aristocrata da família, entre discursos contra o capitalismo, portas de vidro quebradas depois da hora de chegar em casa e lágrimas de redenção num diálogo entre pai e filho que gera a reconciliação necessária para o menino Paulo se libertar.

Na estrutura das “origens heroicas”, não falta a figura de um mentor, encarnado no guru Jay e na voz off com ensinamentos que parecem empurrar o jovem Paulo adiante na jornada espiritual; as mulheres, quase sempre a apoiá-lo ou a colocá-lo no eixo; e o tradicional sidekick (parceiro habitual do herói), na imagem de um Raul Seixas caricato, surgindo em cena já para além da metade do relato como outra presença cuja função será pôr Paulo para frente, fazê-lo aprender a andar sozinho e atingir a glória. Qualquer coisa que puder atrapalhar o roteiro nesse objetivo será logo resolvida com alguma trucagem (a “traição” de Raul Seixas através de uma entrevista no Fantástico, da Rede Globo, com Cid Moreira em imagem de arquivo; ou a “mensagem” captada num episódio de Star Trek na TV) ou alguma tirada bem-humorada mesmo em momentos inadequados (o comportamento maluco-beleza de Paulo diante do agente da ditadura militar que ameaça torturá-lo).

Não Pare na Pista não omite o caráter de “filme de público”, com clara tentativa de conquistar plateias numerosas, impondo-se o desafio de lidar com uma figura tão mundialmente conhecida quanto atacada por várias frentes. O que fica mais em voga sempre é aquilo que Paulo ouve dos demais personagens, e os vários diálogos filmados no automatismo do campo e contracampo aproximam Não Pare na Pista de uma estética recente e tradicional da TV brasileira. A “funcionalidade” perseguida pela direção de Daniel Augusto e pelo roteiro de Carolina Kotscho também está tanto em Julio Andrade interpretar Paulo Coelho também na fase avançada da vida, com maquiagem carregada para tornar o ator irreconhecível, quanto em seu irmão, Ravel Andrade, aparecer como Paulo adolescente. Tudo pela tentativa de uma transparência incapaz de construir qualquer universo de coesão para além das aparências e intenções.

Na ânsia por tornar, através do filme, o personagem Paulo Coelho digno de uma biografia grandiosa para além de um prévio conhecimento externo ao roteiro, o jeito apressado com que se apresentam as situações mais controversas (e potencialmente polêmicas) do protagonista é reforçado. Lá está todo o desbunde travestido de imagens “bonitas”, filtradas e protegidas pela montagem fragmentada de planos curtíssimos e saturados de elementos de cores e sons cuja intenção é emular o estado mental de Paulo. Esses planos acabam por se tornar apenas flashes pipocantes de princípios de cenas que nunca chegam a acontecer. A questão maior do filme, porém, se aproxima à de Walter Salles em Na Estrada: de que maneira falar da contracultura, do sexo, das drogas, de orgias e bruxarias, sem deixar que o filme se contradiga dentro de uma estética que parece negar toda a ousadia das vidas ali retratadas?

Share Button