Morro dos Prazeres, de Maria Augusta Ramos (Brasil/Holanda, 2012)

setembro 24, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

morrodosprazeres

A tessitura do conflito
por Victor Guimarães

Morro dos Prazeres começa com um prólogo muito semelhante ao epílogo de Juízo (2007), o belíssimo filme anterior de Maria Augusta Ramos. Em uma favela carioca, algumas crianças encenam alternadamente os papéis de policial e bandido, munidas de armas de brinquedo. Uma mise en scène muito bem construída apanha a presença dos corpos e se abre para a fabulação desses meninos, transformando uma brincadeira infantil em um poderoso comentário sobre o complexo universo de relações ao qual o filme irá se dedicar. Já nesses primeiros momentos – cujo mergulho na ficção é bastante pronunciado –, anuncia-se um estilo de encenação rigoroso, que já marcava os longas anteriores e atingirá seu ápice no decorrer do filme.

Desse momento em diante, acompanharemos um conjunto de cenas que retratam o cotidiano das relações entre a polícia e os habitantes da comunidade que dá título ao filme, um ano depois da instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora. Ora centrando sua observação no trabalho dos policiais – entre a preparação de novos agentes e as rondas de patrulhamento dentro da favela –, ora no dia a dia de alguns moradores, o filme fará desse difícil equilíbrio entre duas faces do mesmo processo sua principal questão. Com um estilo próximo ao de um cineasta como Wiseman – cujo interesse primordial é essa percepção, na cena, das relações entre sujeitos imersos em instituições –, o cinema de Maria Augusta Ramos demanda um forte investimento do espectador, cujo trabalho é decisivo para que o filme aconteça. No entanto, embora as trajetórias dos personagens principais se cruzem na cena em alguns momentos-chave, a articulação entre eles será fortemente realizada pela montagem, que opera por “polinização” (como escreveu Cezar Migliorin sobre alguns filmes brasileiros recentes): além de constituir cada um dos blocos, essa operação também tece conexões – às vezes mais sutis, às vezes bastante claras – entre eles, bem como abre cada sequência para novos encontros.

Embora haja um interesse pelas diferentes retóricas em jogo (a aula do coronel para os jovens soldados e o discurso inflamado do livreiro para o dono do bar constituindo o ápice desse desejo), o filme buscará com muito mais afinco perceber as nuances daquilo que não constitui uma elaboração verbal bem acabada sobre o problema das UPPs. A câmera frequentemente se deslocará pelas vielas e becos, ora acompanhando a vigilância dos policiais, ora perambulando pelo morro junto aos moradores. Nesse sentido, tanto as inúmeras “batidas” policiais que o filme acompanha (que expõem claramente o conflito e nos jogam na cara o inaceitável constrangimento sofrido por esses jovens cotidianamente) quanto momentos mais íntimos e prosaicos (como as brincadeiras infantis noturnas, na casa de Brulaine) serão igualmente importantes para a tessitura da matéria densa que o filme vem abrigar.

Como em Juízo, Morro dos Prazeres se interessa por construir não apenas uma arena de debate, mas um território sensível múltiplo, no qual todas as questões se sedimentam. Os planos noturnos da favela – cuja plasticidade lembra a trilogia das Fontainhas de Pedro Costa, e principalmente Ossos (1997) –, o rosto acuado do morador diante da lei – na conversa com o capitão da polícia –, a imersão nos espaços da periferia não são apenas detalhes em função de uma narrativa predominantemente verbal – como em grande parte do documentário brasileiro contemporâneo –, mas a matéria expressiva primeira, à qual o filme dedicará uma atenção sempre muito detida.

No entanto, apesar de esse gesto render momentos de força arrebatadora (o canto da avó na volta do hospital, a afetividade entre as policiais mulheres), por vezes o controle excessivo da cena – quase sempre, filmada bem de perto – impede que nos entreguemos sem ressalvas a essas imagens. Vez ou outra, a opção pelo rigor e pela transparência – que, certamente, é o que possibilita todos esses momentos tão fortes – parece não aproximar, e sim nos distanciar daquele universo: há sequências (como a abordagem de Brulaine por um grupo de policiais) em que o dispositivo – a posição da câmera, a localização dos microfones – é colocado em questão pela própria cena, e a recusa do filme em fazê-lo aparecer torna-se um excesso difícil de aceitar. Nesse sentido, é interessante que o encontro mais tenso entre policiais e moradores – e o mais cinematograficamente poderoso, ao abrigar um bate-boca que expõe o conflito cotidiano como nenhum outro momento do filme – seja justamente aquele da saída do baile funk, filmado a uma distância bem maior (e em condições de iluminação bem mais precárias).

Que o filme não opte por acompanhar apenas um lado do conflito – o que, certamente, poderia produzir um maniqueísmo nefasto ao cinema – não significa que ele hesite em se posicionar: expõe a violência simbólica sistematicamente exercida pelos policiais, filma os pequenos atos de resistência da magnética Brulaine ou a leitura de Bakunin pelo livreiro. Diante de um emaranhado tão pleno de nuances, o filme tampouco esgota seu gesto nessa adesão imediata ao ponto de vista dos moradores. Perto do fim, a caminhada de um grupo de policiais mulheres – que encontra a avó de uma delas – e a conversa entre os militares que se segue a essa sequência tornam a experiência desses homens e mulheres de farda – quase todos negros e moradores de periferia – igualmente multifacetada e tingida de sofrimento. Morro dos Prazeres sabe bem: o inimigo não é este ou aquele, mas algo supra-individual, que não tem corpo nem rosto. E o cinema é uma arte dos corpos e dos rostos. Ainda bem.

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