Mato sem Cachorro, de Pedro Amorim (Brasil, 2013)

dezembro 3, 2013 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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Pet sounds em Copacabana
por Andrea Ormond

Sem querer, pelas beiradas, Mato Sem Cachorro (2013) repete o título abrasileirado de The Lemon Drop Kid (No Mato Sem Cachorro, 1951), comediota de Bob Hope. Entre o queixudo anglo-americano e o nerd nacional existem rios de trevas e galáxias. O feminismo de um se resume aos cachos encaracolados das divas B. A liberdade do outro, à mocinha libertária e tutelada pelos pais: Zoé (Leandra Leal). Muito se pode falar sobre Zoé ser uma garota energética e alto astral, a peguete dos sonhos de meninas e meninos. Da mesma forma, muito se pode ver o quanto trintonas, como ela própria, ainda se roem de medo das cobranças familiares. Observe bem, leitor. Neste Mato Sem Cachorro, veja com atenção a cena em que Zoé aparece na taberna dos pais e engole um copete de vinho. Pai e Mãe estão aí, numa Santíssima Trindade, num arranjo que a contracultura não conseguiu enterrar e, hoje, vira radar da vida sentimental dos zifíos.

Piranhas aladas já sangraram os cinemas, voando junto com crocodilos intoxicados em águas radioativas (Piranha II: Assassinas Voadoras, 1981, e Alligator, 1980). Saiam do armário todos aqueles que dizem nunca ter visto algo do gênero. Seja em espeluncas televisivas, seja nos mais remotos torrents da Internet. Mato Sem Cachorro (2013) apela para um cão narcoléptico. Um bicho lindo, lindo, que desmaia quando fica emocionado. Se Capitu não enrubescia, sempre melíflua, Guto, o border collie, cai duro ante o menor abalo sísmico. A ideia é boa. Em termos de cinema brasileiro, tivemos até bacalhau de isopor (Bacs, 1976, de Adriano Stuart). Pets agradam, divertem e aliviam. Vamos a eles.

O cachorrinho Guto é quase atropelado por Deco (Bruno Gagliasso). Deco é quase linchado pela turba copacabanense, que a tudo contempla. Zoé aparece, acontece o clique: o atropelador e a meninota das pernas grossas se apaixonam. Mas o que interessa, acima das mesquinhas coisas, é a Copacabana. Nuinha em pelo. Dono de botequim, atendente de banca de jornal, porteiro, travesti, dondoca, aposentado. Um verdadeiro estamento, que se sacode no bairro ecumênico e carioca. Mato Sem Cachorro possui a inegável característica de colocar (de novo e de novo) Copacabana no condão da trama. Sem essa perspectiva em mente, muito do filme se anula.

Por isto mesmo, causa espanto a participação de Danilo Gentili. O roteiro acaba tendo de se virar para adequá-lo ao microcosmo que não lhe pertence. Surgem daí as piadas sobre Rio-São Paulo e a atitude (correta) de não alterar o estilo São Bernardo do Campo-Santo André-São Caetano de Gentili. É interessante vê-lo no Bairro Peixoto, tanto quanto seria um vendedor da Galeria Menescal perdido na praça Benedito Calixto. Gentili contribui à geléia de Mato Sem Cachorro. Incorpora Leléo, o primo de Deco, e veste um robe cereja, à moda de Hugh Hefner.

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O personagem de Leléo é o típico coadjuvante que sobe no palanque. É o parceirão do nosso Ferris Bueller depressivo, alguém que sempre existiu nas aventuras infanto-adolescentes (hoje espicaçadas até a meia-idade). Outras figuras também oscilam. Paulo Serra, por exemplo, assume o papel do careca assustador, contraponto da radialista Ananda (Letícia Isnard). Algo como o “espião russo”, o arquétipo de bugaloo, que se revela bonzinho.

Primeiro longa-metragem de Pedro Amorim, Mato Sem Cachorro é a ode tranquila a esse mundo torto, bem intencionado, e que faz rir. Não há culpas, não há atormentação. Pelo contrário: há o cachorro. E há o embrulho de tudo o que consumimos com litros de refrigerante e caixas de hambúrgueres, recheados de queijo cheddar. É o Depois de Horas, do Martin Scorsese dos anos 1980, sem as unhas compridas de Harvey Keitel em Caminhos Perigosos (1973). A rádio em que trabalham Zoé e Ananda lembra, aliás, a antológica Rádio Fluminense, estilosa e endiabrada, esmerilhando no dial dos Escorts XR-3. Em certos momentos, poderiam coreografar as danças de Bete Balanço (1984) e Rock Estrela (1985), clássicos de Lael Rodrigues. Na falta de Cazuza, as deidades de Sidney Magal e Fausto Fawcett ressurgem gloriosas em 2013, agora como personas de si mesmas. Os ídolos Ploc estão à solta. Deco, por sua vez, está longe da praia e do estilo bronzeado de Lael. Acaba mostrando ao público uma outra faceta da Zona Sul: largado, barba de Neanderthal e futucando vídeos de mashup na rede. Deco precisa, é claro, das mãos seguras de Zoé – sim, a mulher energética e cativante.

Agora, me digam. Que mal há nesse lollipop, nesse carrossel previsibilíssimo, em que vilões andam de bermudas e anões viram gags? O estilo de Gentili e do convidado Rafinha Bastos, especialmente do segundo, aparecem como resíduo. Apesar de toda a sorte de xingamentos que é direcionada aos dois, Pedro Amorim conseguiu domesticar o que era necessário. Mato Sem Cachorro é bom, é um bom menino, Charlie Brown. Não se dá ao trabalho de nenhum pecado, nem daqueles que, a mil léguas do novo stand-up, povoam o humor brasileiro. O besteirol de Vicente Pereira, Mauro Rasi e afins era incoercível, mandava para as cucuias qualquer tipo de caretice. Elesbão, o Quasímodo da TV Pirata – programa que Rasi, Pereira et alli escreviam – sofria de um defeito amestrado. Falava-se que certa parte de sua anatomia possuía vida própria e, assim, Elesbão uivava. Dizia absurdos hilários, no limite do hardcore possível, encurralado em cadeia nacional, logo após a novela das oito. O mais próximo que Mato Sem Cachorro chega disso é a proposta de Leléo a Deco, para que “alivie” o meigo Guto, “estimulando-o” com carinho. A proposta não é concretizada, obviamente, mas pelo menos a cara de pau existe. E causa furores aos missionários de plantão.

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Guto fica no trono do novo arranjo familiar. Ele aguenta o casal cheio de amor (Zoé) e cheio das mais altas introspecções (Deco). Border collie de lei, aguenta a sanha das gentes que olham para o bicho como um nenénzinho, como um filhinho a ganhar o mundo: neurose preferida de solteironas e perturbados em geral, nestes dias que correm. Mas como Guto não quer revolucionar coisa alguma e prefere apenas um biscoito Frolic, acaba que o cão, o Pai e a Mãe fazem de Mato Sem Cachorro uma angelical matinê. Estourada em alguns minutos – cento e treze extrapolam – mas que se mostra tranquila e agradável.

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