Mar Negro, de Rodrigo Aragão (Brasil, 2013)

outubro 3, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

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Um outro espelho
por Pedro Henrique Ferreira

Desde as primeiras experiências cinematográficas industriais no Brasil, sempre houve uma enorme dificuldade dos realizadores em obter sucesso comercial com os ditos “filmes sérios”. O que enchia o bolso dos exibidores eram as comédias e, de preferência, as mais baixas possíveis, aquelas que os críticos da época categoricamente denominavam com a expressão pejorativa de “chanchada”, sobretudo para não ter de lidar mais profundamente com o fenômeno. Não obstante a péssima recepção da crítica, era o “gênero” que mais levava espectadores às salas de cinema.

Irritava (e talvez até hoje irrite) alguns críticos e realizadores que o drama fique sempre um pouco “fora de lugar” no imaginário do público brasileiro, e que o cômico tome o posto de arauto popular. Mesmo quando se almejava um discurso sério, arrancava-se risadas de um povo que não conseguia levar a sério a própria seriedade. No Brasil, o cômico, quão mais baixo o rigor técnico, quão mais destituído daquilo que um europeu entenderia como arte, mais dá certo. Culpava-se o público, mas se atropelava (e talvez até hoje se atropele) uma indagação de causas: será que o cômico tem algo a ver com a falta de sensibilidade estética? Ou não tem algo a ver com aquilo que é o próprio Brasil e um projeto de si mesmo? Não tem a ver com a nosso próprio senso do ridículo e de submissão, qualidades que germinam com uma certa espontaneidade no horizonte da comédia, o espetáculo do “homem inferior”, como definiria a poética aristotélica? 

No passado, era visível como as pretensões da crítica e dos realizadores não casavam com a expectativa do público. Isto porque, fosse a crítica atrelada a qualquer uma das três linhas ideológicas da época – aquelas que Octavio Ianni identificaria como, respectivamente, o desenvolvimentismo interdependente, trabalhista ou comunista – havia uma vontade comum de que o país fosse outra coisa para além daquilo que ele era. Ora, neste panorama, a chanchada era justamente tudo aquilo que o Brasil não deveria ser, ou não queria parecer ser, ainda que, no fundo, o sucesso de público surgia como uma espécie de superestrutura subjetiva para provar que nosso imaginário de alguma forma ainda o era. O filme sério estava “fora do lugar” porque não dizia respeito diretamente à realidade brasileira. Daí a grande sacada de um Alex Viany, por exemplo, em notar que a chanchada tinha, mesmo que inspirada pelos sonhadores musicais americanos, no fundo, no fundo, alguns aspectos realistas (como um bom comunista brasileiro da época, seu ideal não era metafísico, mas realista), pois evidenciavam, de alguma maneira, tudo aquilo que o Brasil era sem o querer ser. É aquilo que Paulo Emílio Salles Gomes definiria com uma notável precisão: nossa incapacidade criativa de imitar o modelo.

Chegamos em 2013 e nos deparamos com Mar Negro, de Rodrigo Aragão, um longa-metragem que, mesmo operando na chave do terror, assume a herança cômica brasileira. O filme se posiciona naquele mesmo lugar limite em que se posicionavam as chanchadas, e traz justamente as mesmas qualidades que Paulo Emílio identificaria nelas. Há uma técnica refinada na caracterização das monstruosidades, um rigor artístico visível, mas mesmo assim, uma escolha pela sátira, pelo escracho, pelo escárnio dos personagens, dos cenários, e mesmo de tudo aquilo que deveria nos causar medo.

Logo no início do filme, quando o barco encontra um monstro no meio do mar e ele ataca o velho pescador, há uma quantidade imensa de planos em uma duração exageradamente dilatada. A atuação é grandiloquente e caricata, repetindo motes de interpretação e gritos de palavrões. Ao contrário do que isto pode fazer parecer, não são escolhas pelo inverossímil, traços maneirista no peso da mão do artista, ou tampouco distúrbios, erros de cálculo do diretor que o desviaram da meta e fizeram com que a obra descambasse para a tosqueira a lá Os Trapalhões. O que acontece é que o seu terror é um terror brasileiro, adaptado aos problemas que o gênero poderia suscitar em nosso país. Neste sentido, trataria-se de um terror “realista”.

O terror brasileiro não pode evocar o medo ou o mistério. Ele se baseia, sobretudo, no excesso de visibilidade, em escancarar, exagerar e repetir inúmeras vezes na tela a imagem do nojo. O método evoca uma insistência na idéia de sujeira, de um asco que esta aí, à nossa frente, mas que os olhos pudicos do público preferiria não enxergar. Da mesma forma que as chanchadas involuntariamente revelariam uma forma de atraso do país, o terror de Aragão parece voluntariamente revelar o abandono, o cômico e o trágico de sermos o que somos em um lugar que, tal qual repete o moto da cantora latina, “é o cú do mundo” – a impossibilidade de desenvolvimento industrial em um país de economia interdependente, exportadora de matérias-primas. Ainda hoje, o Brasil sofreria da mesma incapacidade criativa de imitar o modelo, enquanto seus habitantes vivem uma espécie de faz-de-conta.

Com isso, o terror adquire seu sentido social: é mobilizador, conscientizador, lança luz sobre aquilo que ninguém quer enxergar. Mar Negro desenha um microcosmos, operando por meio de locais e figuras ao mesmo tempo metafóricas e pitorescas. Um bordel vai abrir no vilarejo. Após a noite de abertura caótica, a dona do estabelecimento se revolta e diz que só queria trazer diversão àquela gente. Parece ser a única forma de divertimento possível e desejável – a prostituição, a nudez – elementos que, se não estão diretamente ligados à comédia brasileira e a chanchada, estão à pornochanchada.

No eixo oposto está o Albino, uma figura excêntrica e amedrontada. Estudada, solitária e fora-do-lugar. Prefere o amor puro, romântico. Faz magias negras e pactos com o diabo, está disposto mesmo a sacrificar uma criança para fazer reviver seu amor perdido. Destruir o futuro para salvar o passado. É o ícone de um ideal de arte (ou na realidade, dois ideais de arte postos em contraposição), e não à toa o apelido sarcástico. Mar Negro não redime nenhum dos dois – o populismo do bordel e o isolamento romântico são apresentados como duas fantasias inaplicáveis enquanto, do mar, uma mancha negra invade a terra.

E o que é este Mal que destrói o vilarejo praiano? Qual é a origem do “problema” que faz o lugar afundar-se em sua própria miséria? Não há uma resposta definitiva, uma causa sui generis declarada para aqueles monstros que surgem do mar. Não há uma explicação organizada, que mesmo os zumbis de The Fog (Carpenter) ou os extraterrestres de O Nevoeiro (Darabont), dois diretores tão mais ocupados com o mistério, em algum momento de suas obras, ao menos ponderam.

A resposta pode no máximo ser uma vaga suposição: o vilarejo praiano não possui mais nenhum fruto original que agregue valor. Como vários personagens repetem incessantemente durante toda a obra, o peixe mais valioso de lá já foi todo pescado e vendido para os turistas. Sobrou pouca coisa, e a população local come menos ainda (a arraia). Em breve, só restarão as aberrações. Podemos projetar que tudo isto tenha algo haver com a lama negra, parecida com petróleo, que jorra dos corpos dos monstros e intoxica a todos. Ou imaginar, da imagem final, a única em todo o longa-metragem que investe em alguma espécie de síntese: a menina sobrevivente sobe ao topo de uma pedra e olha para o mar somente para ver uma grande mancha negra que ninguém ainda tinha percebido.

Curiosamente, por razões que às vezes escapam às característica do filme, é bem possível que o Mar Negro acabe se orientando mais para um nicho especializado do que para um público mais amplo – justamente o contrário das chanchadas e pornochanchadas, que criavam filas e mais filas nos quarteirões. São as comédias burguesas, límpidas, e os personagens arrumadinhos que estão em voga. A nossa incapacidade criativa de copiar que Paulo Emílio Salles Gomes identificava como um aspecto cultural e popular nas obras, ligado a uma tradição tipicamente brasileira, hoje é vista como cult, alternativa, colocada em um âmbito diferenciado. 

Este pequeno caráter social da recepção diz muito. Pois Mar Negro, em sua forma, revela coisas sobre nós que não queremos saber: que somos imperfeitos, que somos ainda atrasados, ainda subdesenvolvidos. A profecia se concretizou – entramos na BRIC, chegamos a um outro patamar. Mas também, seguindo a máxima de Gramsci, onde há uma condição subjetiva, é necessário também que em algum grau a condição objetiva também já exista. Parafraseando o italiano, “na verdade, se se considera bem, não há neste desejo o desejo de uma arte de preferência a outra, mas sim de uma realidade moral de preferência a outra. Do mesmo modo, aquele que deseja que um espelho reflita não uma pessoa feia, mas uma pessoa bonita, não deseja um espelho diverso daquele que tem diante de si, mas sim uma pessoa diversa”.

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