La Sapienza, de Eugène Green (França/Itália, 2014)

outubro 4, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

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A luz esquecida
por Pedro Henrique Ferreira

“A fábrica é a nova catedral”, diz o arquiteto Alexander (Fabrizio Rongióne), na ocasião de uma premiação. Ela organiza tudo à sua volta, inventa o espaço, dá a cada coisa o seu lugar na mesma medida em que se adequa ao espaço à sua volta. Nas inúmeras discussões sobre arquitetura de La Sapienza, o célebre arquiteto defende a funcionalidade da construção urbanística, sua monumentalidade e sua adequação natural ao ambiente. Seguidor dos princípios arquitetônicos modernos, o protagonista deste novo longa-metragem de Eugène Green passa por uma crise de inspiração que é também uma crise de consciência sobre o sentido e a ética do próprio fazer artístico. Representante de um conjunto de valores bastante contemporâneos, Alexander resolve partir em uma jornada acompanhado de sua esposa, uma estudiosa do comportamento humano, refazendo a trajetória de vida do arquiteto Francesco Borromini (por quem nutre uma certa obsessão e a quem o filme paga tributo), para, mergulhando no universo de um dos pilares fundadores mais ignorados da arquitetura barroca, tentar encontrar este algo que lhe falta. Ou seja, algo que faltaria a toda a arte moderna.

Já em seu primeiro destino, o casal se cruza com um casal de irmãos. A menina tem uma crise nervosa. Ao descobrir se tratar de doença mental crônica, a esposa de Alexander decide ficar próxima da menina até que ela se cure. Já o rapaz, um estudante de arquitetura recém-admitido na universidade, segue a jornada de Alexander rumo a Borromini, acompanhando-o num trajeto de formação. O arquiteto profissional reluta em levar o jovem, pois não nutre nenhuma simpatia por ele, mas é rapidamente persuadido pela esposa. Dos algarismos iniciais, são criados dois núcleos que o longa-metragem de Eugène Green cada vez mais desdobrará: o road movie de iniciação artística dos dois homens, e os diálogos à cama sobre temas comportamentais e psicanalíticos das duas mulheres.

Muito como a arquitetura de Borromini, La Sapienza procede, tanto a nível estético como a nível narrativo, pela serialização obsessiva de poucos elementos. Esses elementos constroem, pela matemática da repetição, uma progressão linear, abruptamente cruzada (rasgada, empurrada) por uma outra trama linear, germinada pela multiplicação de uma outra forma. Construções elípticas, côncavas, espirais e pinaculares se desenvolvem até se cruzarem e se encerrarem, por uma espécie de afinidade seletiva, em uma simbiose harmônica epicentral. O princípio é notável no interior do quadro, pelo exercício de economia cênica e pela composição por espelhamento: se há uma cadeira no canto direito do scope, um equivalente simétrico também se encontra na esquerda; uma mesa à frente terá uma outra como seu fantasma ao fundo. Idem nas operações de decupagem: o vai-e-vem de “planos-contra-planos” frontais que trocam de lugares e personagens, mantendo a progressão e o ritmo, para então reencontrar os cenários e personagens anteriores; os passos sincronizados de casais que andam juntos e encontram um outro casal que anda junto, também em passos sincronizados; os pés de uma caminhada retornarão em uma outra caminhada; ou a primorosa cena à mesa de jantar (e Bordwell não escreveu que é à mesa de jantar que mais entendemos um diretor e a essência de seu misè en scène?), na troca triangular de olhares entre o célebre arquiteto, sua esposa e o jovem aspirante.

Esta atonalidade excessiva cria um todo diáfano que nos conduz a um sentimento religioso, ou ainda, segundo Luiz Soares Júnior, aqui na Cinética, “o numinoso nasce de um excesso de método, de um escrúpulo matemático na apresentação dos corpos (humanos ou arquiteturais)”. Este berço não é lá tão natural assim. O rigor faz vingar um sentimento de aprisionamento e esvaziamento tipicamente bressonianos, mas a repetição semi-musical destes elementos imóveis e rígidos e a sua justaposição com outros cria, senão a sensação de movimento, ao menos um percurso de forças inquietas, um todo fechado e hermético, a ser acompanhado e vivenciado pelo espectador, que, estando em seu interior (como os dois personagens vêm a estar, ironicamente, no interior de uma igreja trancada a chave), reconhece a simbiose de suas nuanças e movimentos e o resultado ascético desta totalidade – uma totalidade que é, ao mesmo tempo, um absurdo, pois não existe na natureza. A técnica cinematográfica de composição rarefeita e justaposição matemática, que representa um certo enjaulamento, torna possível a demonstração lógica deste absurdo e, portanto, a apresentação silogística desta luz diáfana, do mesmo jeito como é ao mesmo tempo absurda, lógica e iluminadora a próprio morte de Borromini.

É justamente esta luz demiúrgica – a forma como invade o edifício rígido e arrebata o seu habitante, expiando seus pecados – a lição que Alexander tomará do seu jovem pupilo, que, mesmo não tendo a carga de conhecimento técnico, ainda é capaz de lhe chamar atenção a sentimentos básicos do espírito. É ao mesmo tempo esta a lição que La Sapienza parece querer dar à arquitetura moderna e, por tabela, ao cinema contemporâneo como um todo: a retomada de uma gama de valores conectados à ideia de amor (o arquiteto redescobre seu amor pela esposa), espírito, maravilhamento e harmonia,somatizadas na idéia de sabedoria, para além da funcionalidade, do naturalismo e da beleza; valores típicos da tradição artística, para quem parece acreditar que ainda há um fio de conexão do cinema com as discussões das artes plásticas clássicas, renascentistas e pós-renascentistas.

A certa altura de La Sapienza, Alexander se afirma um herdeiro de Bernini, protagonista da alvorada da era barroca e arquirrival de Borromini. Enquanto para o primeiro tratava-se de persuadir o homem científico-renascentista a um retorno à religiosidade, segundo as prescrições da contrarreforma, através do sensualismo da imagem naturalista – ou da aristotélica “imaginação do possível” – o segundo apostava na demonstração do inefável – não convencer ou persuadir dramatizando a natureza, mas demonstrando logicamente os limites de seu absurdo. Neste sentido, a preferência do longa-metragem pela encenação petrificada e a decupagem um tanto axiomática também se articula como um discurso contra a sedução da imagem, colocada pelo moderno como horizonte entre o homem e o cosmos – como se a natureza, a lógica e a imagem realmente pudessem tão impunemente sê-lo. A saída é o movimento de ascese tantas vezes desenhado pela câmera, do terreno ao céu.

Curiosamente, La Sapienza não dialoga somente com o passado, mas com um punhado de filmes contemporâneos, figurando como uma das respostas possíveis a muitos que apresentam o mesmo drama artístico. São filmes que oferecem desde formas embrionárias e radicais de crise, por exemplo – como a “viagem à Itália” de Kiarostami em Cópia Fiel, na qual não se apresenta uma reconciliação possível entre o casal (narrativamente), entre o primeiro plano e o fundo de quadro (esteticamente), entre o mundo moderno e o clássico (conceitualmente), e tampouco oferece um remédio ao impasse – ou ainda, no materialismo ascético de Brisseau em A Garota de Lugar Nenhum (2013) e muitos dos seus longas-metragens mais recentes, nos quais a reconciliação existe, mas é trágica e eventualmente conduz à morte ou ao abandono.

Pudera. Para quem acredita que a tradição europeia ainda pode render frutos e servir menos como o espelho de uma ruptura, e mais como uma forma de continuidade histórica, é uma condição sine qua non retomar a esfera aberta pela dualidade barroca Bernini-Borromini. Sua ligação turbulenta com o presente é factível, pois decorre de uma dialética do pensamento. Como escrevera Argan (não à toa parafraseado no longa-metragem), “a pergunta sobre a eticidade da técnica, sobre o seu direito de colocar-se como modelo de comportamento humano, sobre sua capacidade de realizar o fim último da aventura humana, a salvação, apresenta-se no início do século XVII com o dualismo Caravaggio-Annibale e, pouco depois, com maior aspereza, com o dissídio entre Bernini e Borromini. Como o problema continua aberto e constitui, hoje, a espinha dorsal da angústia da ‘civilização tecnológica’, pode-se ver em que medida o século XVII, com as suas contradições, foi o prólogo do drama histórico do mundo moderno”.

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