Jonas (idem), de Lo Politi (Brasil, 2015); Urutau (idem), de Bernardo Cancella Nabuco (Brasil, 2015)

janeiro 28, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

* Cobertura da 19a Mostra de Tiradentes

Jonas (2016), Lo Politi

Jonas (2015), Lo Politi

Patologias do quadro
por Raul Arthuso

Por vezes esquecemos que deus mora nos detalhes. Dois filmes em Tiradentes este ano trazem elementos temáticos muito semelhantes: violência, sequestro, confinamento, uma relação “amorosa” feita em contornos perturbados que colocam questões sobre representações de poder e classes sociais. A diferença fundamental entre Jonas, de Lo Politi, e Urutau, de Bernardo Cancella Nabuco, está nas escolhas estéticas para lidar com essas questões, levando a resultados artísticos e políticos completamente diferentes. Por isso mesmo, vê-los tão próximos na tenda de Tiradentes dá a clara noção de que questões políticas nas obras surgem nos meandros dessas escolhas.

Em Jonas, as questões são apresentadas a partir da representação do espaço de convivência das personagens, um bairro de classe média-alta paulistana com a presença tanto da elite da cidade quanto da classe trabalhadora que a serve, além do tráfico de drogas que acaba se inserindo na lógica do espaço – e, em vez de poder paralelo, são uma espécie de serviço gourmetizado do comércio de entorpecentes, fazendo pedido por demanda e delivery nas casas dos playboys. A partir da relação de dois jovens que cresceram juntos, Branca (Laura Neiva), a menina rica, e Jonas (Jesuíta Barbosa), o filho da empregada de sua casa, o filme apresenta as questões raciais e de classe com as quais pretende lidar: as oposições de cor da pele bastante pontuadas – não apenas pelo nome da garota como pelas relações entre Jonas e seus “colegas”, sendo ele o mais branco no meio de negros e mestiços, algo apontado o tempo inteiro por todos no bar onde se concentram os bandidos – e a fluidez estabelecida entre trabalhadores, patrões e traficantes (cujo negócio é alimentado pela classe privilegiada) no trânsito de casas, ruas e botecos que a câmera perfaz.

A dinâmica entre a demarcação das fronteiras raciais e a fluidez do convívio social sofre um esvaziamento. Politi opta pela plasticidade fotográfica, a potência da técnica (a steadycam que “pula” o muro), pontos de vista e cortes eficientes para a clareza da dramaturgia, construção das atuações – especialmente de Laura Neiva – feita de tipificações e reiterações de gestos que transformam as personagens em tipos. Os traficantes fazem “cara de mau”, as empregadas oferecem bolos para os visitantes, Branca seduz descaradamente todos os homens, confundindo o olhar de Jonas, sempre perdido, reforçando a crise após o rapaz cometer o seqüestro de sua amada.

A opção estética pela reiteração das intenções a todo custo tira toda a opacidade do mundo filmado. Por outro lado, fica claro que, na saturação das exposições, resta só a superfície: Jonas é um filme de rótulos. Negros ou brancos, patrões e empregados, bons e maus, filmado com uma luz leitosa exibindo a beleza das embalagens, o pai alcoólatra, a mãe trabalhadora, o irmão mais novo protegido para seguir o mesmo caminho. Os traficantes cruzam os braços e fecham a cara enquanto um samba extradiegético toca sempre que aparecem, Branca seduz com seu olhar inocente enquanto toca uma suave música pop com timbres eletrônicos… os rótulos, tanto dos corpos e seus gestos quanto das referências bíblicas que criam alguns sentidos da narrativa, sustentam uma mecânica esvaziada do mundo. Mesmo estas referências ao Antigo Testamento são slogans na embalagem: o profeta Jonas serve para informar uma faceta de uma personagem que não existe na tela, só na descrição oral de sua mãe naquele plano. Assim, questões raciais e de classe são emblemas de uma problemática nunca presente. O interesse de Lo Politi é a história de amor impossível entre seu protagonista e Branca, a donzela raptada, colocada na baleia, caindo de amores pelo seu sequestrador.

O mundo de Jonas é uma celebração da virtude moral, uma retomada distorcida de Tristão e Isolda no bairro classe média paulistana. O carnaval parece o ambiente perfeito para completar o encaixe: sua indumentária feita de colagens e materiais reaproveitados formam fantasias deslocadas de seu sentido histórico na apresentação de uma celebração comunitária que serve de expurgo pontual dos verdadeiros sentidos da sociedade brasileira. Apesar da aparência social do filme, a política não existe. Não é algo novo: Jonas é uma reedição de Orfeu (1999) mais consciente das transformações estéticas do cinema contemporâneo (o filme de Diegues era demodê em sua fatura), mas ainda assim reflexo de uma sociedade cujos conflitos devem ser jogados para baixo do tapete para serem resolvidos, esvaziando o mundo quanto mais se apropria de suas estruturas (sociais, raciais, comerciais, musicais e celebratórias), apropriando-se de veias abertas na tentativa de costurá-las. O problema é que, como escreveu Siegfried Kracauer, “quanto mais incorretamente os filmes apresentam a superfície das coisas, tanto mais corretos eles se tornam e tanto mais claramente refletem o mecanismo secreto da sociedade”.

Urutau (2015)

Urutau (2015), Bernardo Cancella Nabuco

Em Urutau, o ponto de partida é diametralmente oposto: o mundo está completamente ausente do filme quando ele começa. Um jovem é mantido em cativeiro por um homem mais velho (que abusa sexual e emocionalmente dele), num cômodo de paredes com cores esmaecidas e cheias de marcas de um tempo inacessível ao espectador para além da camada visual. O garoto vive uma rotina comum – acorda, escova os dentes, faz a lição de casa – filmada em planos longos fixos que tentam dar conta de toda a ação da cena sem correções de câmera. Em Urutau, o mundo é o quadro.

O filme se faz de um sistema de encenação em torno, então, do tempo: ações minuciosas, milimetricamente coreografadas para insuflar a percepções dos vazios entre os gestos e a dinâmica esvaziada do espaço fílmico. Concentrado em um dia, os elementos da trama realçam o tempo: a vela de aniversário marcando a duração do sequestro; o telefonema recebido pelo sequestrador combinando o dia de uma reunião; a roupa apertada que quantifica o crescimento do garoto ao longo de seus anos de cárcere. O tempo se expande da encenação para o tema e, se podemos supor que a história se passa ao longo de um único dia, é mais pela ordenação das ações metódicas das personagens e referências verbais que pela imagem.

Apesar de controlado, o filme causa desestabilização: a distensão do tempo do plano perturba sua fruição linear. Urutau é, nesse sentido, um embate entre filme e espectador: o esgotamento da narrativa entra em choque com o esgotamento físico de quem assiste. O filme reproduz, como resultado estético, sua visualidade de cativeiro: Urutau em si é uma prisão. O desejo de fuga ou o total aprisionamento são as saídas possíveis ao contato com o filme. Partindo dessa abstração do mundo, ele vai se preenchendo dos pequenos vestígios que novas ações trazem. Assim, enquanto Jonas opera uma abstração dos elementos narrados em favor de uma moral esvaziada, Urutau parte de um quadro sem mundo para compor uma patologia muito próxima da relação Jonas-Branca, contudo, em cores mais carregadas e reconhecíveis de outros projetos de cinema torturante, como Michael Haneke e Ulrich Seidl, onde o sofrimento físico graficamente expresso na tela é parte fundamental da experiência.

O quadro-prisão de Urutau não permite fluidez de sentido. O filme é o oposto do tratamento do plano-sequência no cinema contemporâneo, que tende a fechar os limites do quadro para permitir uma fagulha de espontaneidade. A performance é um crime condenado de saída. Josias (Gerson Delliano) tem um infarto e Fernando (Nicolas Sambraz) consegue abrir a porta do cativeiro, revelando uma das últimas informações da trama – os fundos da casa de seu sequestrador. Quando o garoto atravessa a porta, a câmera faz seu primeiro movimento em todo o filme e recua, não ultrapassa os limites do cômodo. Logo em seguida, Fernando volta, numa ambiguidade perturbadora sobre a relação com seu sequestrador. O quadro catalisa todos os elementos da narrativa – personagens, objetos, gestos – para dentro de si.

Dois filmes com perturbações tão próximas – sequestro, relações de poder, dependência emocional, sexualidade e abusos diversos – revelam-se patologias muito diferentes, pois a questão não se trata de intenções e ideias, mas da transposição delas em visualidade. Urutau constrói a patologia ao atrair elementos com bastante ambiguidade para a narrativa pela força de seu quadro-prisão e o tempo indeterminado dos planos-sequências. Jonas, por sua vez, é o filme mesmo uma patologia: sua violência é suavizada na fluidez da montagem e a fotografia suja pasteurizada, criando ambiguidades para fora dos limites da narrativa de sentidos constantemente reiterados para não deixar as arestas que o próprio filme-patologia levanta.

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