Infância, de Domingos de Oliveira (Brasil, 2014)

agosto 9, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

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O tempo redescoberto
por Marcelo Miranda (colaboração especial)

“Ou porque a fé que cria se haja estancado em mim, ou porque a realidade só se forme na memória, as flores que hoje me mostram pela primeira vez não me parecem flores de verdade.”

Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust

Há quase 50 anos o diretor Domingos de Oliveira realiza um cinema de afetuosidades muito voltado tanto a seus sentimentos quanto especialmente às próprias vivências. Nunca foi segredo que Todas as Mulheres do Mundo (1966), seu longa de estreia, era uma espécie de reconstituição livre da relação do cineasta com a atriz Leila Diniz, protagonista do filme e com quem ele era casado. Nos anos seguintes, a obra de Domingos se adequou aos momentos específicos da vida dele, funcionando sempre como instantâneos de si mesmo – e a persona do Domingos ator, tão impregnada da persona do Domingos criador, apenas reforçou o caráter algo “retratista” dos filmes.

Eis, pois, que Infância promove um considerável recuo no tempo ao definir o campo de ação nas lembranças de um Domingos de Oliveira ainda infante (aqui chamado Rodriguinho e interpretado por Raul Guaraná), num casarão aristocrático do Rio de Janeiro, na efervescência política, econômica e social de meados dos anos 1950. A ação percorre um único dia, dividindo-se entre os vários personagens a circular pela casa que, de certa maneira, modelam o garoto para o futuro que lhe aguarda. Infância tem o sabor da nostalgia e do resgate memorialístico livre (porque não necessariamente fiel a todos os fatos, empreitada evidentemente impossível). A naftalina, esse símbolo da preservação da coisa antiga, e cujo objetivo é fazer o velho cheirar e parecer como novo, é o gatilho narrativo do filme, a partir do instante em que o cachorro de Rodriguinho morre por comer bolas de naftalina largadas no chão.

Mas se a naftalina serve para preservar o tempo (enganosamente) estanque, seu desaparecimento libera a ação natural da vida, permitindo que o objeto até então preservado passe a se carcomer e envelhecer, a representar, enfim, a passagem do tempo. Ao comer as naftalinas, é como se o cachorro de Rodriguinho liberasse o dono para crescer e acumular memórias, assim como fazer com que a casa e os moradores igualmente sejam obrigados a avançar rumo a um futuro que eles são incapaz de prever. Rodriguinho, porém, não fica sabendo de imediato da morte do cachorro: a avó, Mocinha, (Fernanda Montenegro), obriga a empregada da casa (Nanda Costa) a esconder do garoto o fato trágico. Com isso, a matriarca detentora dos valores familiares tenta simbolicamente impedir a passagem do tempo – não apenas do neto, mas de todo um contexto histórico dentro do qual ela já percebe estar se tornando retrógrada e decadente. A abater a família, uma crise financeira, representada especialmente por Henrique (Paulo Betti), procurador de Mocinha e também seu genro e malandro típico de uma imagem cínica das altas rodas cariocas do passado.

A relação de Infância com o tempo se dá na fluidez dos movimentos da câmera do diretor de fotografia Paulo Violeta, fazendo deste o trabalho mais formalmente elaborado de Domingos de Oliveira em muito tempo. O orçamento de R$ 2 milhões, altíssimo para os padrões do cineasta, aqui se faz ver tanto na reconstituição de época quanto na técnica de realização, em que se opta mais por planos longos, usados não só para narrar, mas também para mostrar. O casarão se torna, assim, personagem essencial desta pequena crônica de Domingos: as imagens insistem em sempre descrever o espaço nos mínimos detalhes e recortar os objetos das cenas e os corpos dos atores numa interação direta com esse espaço. Daí surgem planos como o de Henrique e Orlando (Ricardo Kosovski) a conversar no jardim enquanto o quadro se movimenta segundo os tropeços etílicos de um dos personagens, ou o travelling a seguir o chão até alcançar os pés de alguém caminhando, em movimento já usado em filmes de Manoel de Oliveira. Domingos de Oliveira, em Infância, demonstra maior atenção à artesania do filme, ainda que permaneça em estilo de encenação um tanto despojado (às vezes grosseiro) característicos de títulos como Feminices (2005), Carreiras (2006) e Juventude (2008).

Mesmo com apuro maior em relação a trabalhos mais recentes com sua assinatura, Domingos de Oliveira segue a máxima de dar total espaço e atenção à figura do ator, algo comum a seus melhores e piores trabalhos. Infância é tanto o resgate do passado de seu realizador quanto é um filme desenhado e pensado para comportar a forte presença de Fernanda Montenegro. A atriz, aos 84 anos, chegou a um ponto de culminância na carreira que sua mera presença na tela carrega uma iconicidade infinita, quase impossível de ser desvinculada em prol de alguma personagem específica. Mocinha, afinal, não é mais a representação da avó de Rodriguinho/Domingos do que Fernanda Montenegro em pessoa e personalidade construída. Do corpo à voz, das expressões ao figurino, ela domina o filme exatamente como Mocinha domina a família – e, de certa forma, sua encarnação dessa matrona em vias de extinção é também um grito melancólico relativo à própria finitude de Fernandona.

O cineasta joga com ideias tão delicadas demonstrando a consciência de estar, ele mesmo, aproximando-se do fim da vida. Em vez de se resignar, Domingos se imbui do espírito lúdico do artista que se apega ao que melhor pode cavoucar da memória, autêntica ou inventada. Isso lhe permite até promover o encontro de si mesmo com o garoto que o interpreta: juntos, em algum lugar indefinido, os dois jogam fora as bolas de naftalina e discutem – tendo a arte como pano de fundo – a melhor forma de crescer. Infância, com as imperfeições que lhe são inerentes, é o filme de formação de Domingos de Oliveira.

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