Homo Sapiens, de Nikolaus Geyrhalter (Áustria, 2016)

setembro 1, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

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* Cobertura do 5o Olhar de Cinema

Vestígios de um colapso anunciado
por Pablo Gonçalo

Locações remotas. Lugares abandonados. Arquiteturas que não abrigam mais ninguém. Espaços vazios com objetos largados, em desalinho. Ruínas em seus acúmulos, tão distintas e espalhadas que mais parecem o retrato de uma tragédia global, que ocorreu nos últimos anos. Aos poucos, certos índices: páginas soltas de gibis e mangás voando do que restou de uma livraria no Japão. Ao lado, uma loja do McDonalds, completamente erma. Leitos de hospitais mal dispostos que formam uma imagem peculiar, sem ninguém, sem pessoas, apenas com pedaços mal acumulados, como se fossem um palimpsesto de restos ou de construções já derruídas pelo tempo. São planos estáticos filmados em Fukushima, após o tsunami, na Bulgária, nos Estados Unidos, e em alguns países da Europa. Por que tantos lugares? Por que tantos destroços?

Não ouvimos palavra alguma, mas, em meio ao sutil ruído do vento, Homo Sapiens diz muito sobre a ausência da espécie que está no seu título. As pistas deixadas por Nikolaus Geyrhalter, o autor desse singular documentário, estão claras desde as primeiras cenas. Vê-se, não por acaso, um belo mosaico bizantino. Ele forma um delicado espelho d’água. Paulatinamente, com mais alguns planos, revela-se um antigo anfiteatro, num local, talvez, que mostra o auge e o declínio de uma civilização antiga. As ruínas de Homo Sapiens, portanto, são genuinamente históricas. Ou, quem sabe, inscritas no espaço por sujeitos dessa espécie que preferem grifar, escrever em cada pedaço do chão. São escrituras arquitetônicas que vivenciaram, de algum modo, o ápice e o ocaso de um modo de vida, também profundamente histórico e, na ampla maioria dos casos, intensamente marcados por produções industriais, produtos do capital.

Junto ao mosaico, ao continuarmos com aquelas primeiras descrições das ruínas bizantinas, ouve-se uma chuva, uma contínua água que cai do céu e que coligará os próximos planos. Primoroso, o desenho sonoro de Homo Sapiens tecerá um potente contraponto sensório. O som realiza um contraste entre as formas naturais – como a areia, o mar, a água – com outros ruídos que são demasiadamente humanos e históricos, como, por exemplo, os metais de gaiolas de uma fábrica abandonada que triscam um contra o outro. O desenho de som transforma-se numa pequena sinfonia desses barulhos do mundo. Sons de abandono que nenhum ouvido humano, após o colapso visto e anunciado, será capaz de escutar.

Filmes de locações vazias, ou de gestos de abandonos de cidade, são relativamente comuns. Lembro, na mesma tradição alemã de uma estética das paisagens, com quem o austríaco Geyrhalter dialoga, de boa parte do trabalho documental de Werner Herzog, sobretudo nos anos 1970, em filmes como La Soufrière (1977), no qual toda uma cidade é abandonada para sobreviver ao vulcão que entrará em erupção. O vazio, as ruínas, o escape, todas essas ausências no filme são dramaticamente suscitadas por uma catástrofe previsível, mas, que ironicamente, acaba por não se efetivar. Também remeto aos filmes de James Benning, que se deliciam diante de paisagens não humanas, mas prenhes dos seus vestígios. Obras como Casting a Glance (2007), Ten Skies (2004), entre outras, filmam, a despeito da presença da câmera, uma contemplação da natureza que prescinde do nosso olhar. Seria como se a perspectiva de um olho do Homo Sapiens fosse intrusa a acontecimentos fortuitos que ocorrem antes e durante a nossa passagem por este planeta (e talvez depois).

É a sua complexa perspectiva temporal que torna esse documentário realmente peculiar. Trata-se de um tempo que gera imagens verdadeiras e presentes, mas que, num impossível plano de conjunto, catalogam cenas de uma catástrofe global que estaria prestes a acontecer. Revela-se, assim, um olhar caro ao campo do realismo especulativo, onde as imagens brotam de um futuro que não conseguiremos apreender, ver, vislumbrar ou testemunhar. Ao contrário dos filmes de Herzog e Benning, o tempo das paisagens nesse documentário apontam para um futuro remoto, prestes a explodir a todos e às nossas retinas. É aqui que o documentário abraça-se como uma ficção tão próxima da metafísica como de uma amarga página do apocalipse. Homo Sapiens quer nos fazer vivenciar algo que seria evidente depois do nosso fim.

Embora essa proposta estética seja realmente sedutora e contagiante, há, por outro lado, uma estranha restrição política. O quadro geral do documentário diz mais respeito a um problema do colapso da civilização ocidental, contemporânea, capitalista, mas que, de forma alguma, abarca a finitude de todos os arranjos sociais da nossa espécie. Diferente do apocalipse cristão, a catástrofe Yanomami, por exemplo, prega que o fim verá de fora, de cima, do céu, quando nosso planeta se fundirá novamente com o cosmos. Nesse cenário, não há ruína. Nesse contexto, o realismo especulativo de Geyrhalter é totalmente deglutido pelos Yanomamis, assim como seria e será por outras cosmologias ameríndias, para ficar num exemplo mais próximo. Quando o céu cair não haverá sequer ruínas, já que as ruínas são problemas ontológicos de povos históricos. É aqui, “hiper-eurocêntrico”, que o Homo Sapiens do título revela-se como o colapso restrito ao homem ocidental. Sua generalização é perigosa e prepotente. Quando povos ágrafos pisarem por essas ruínas que eles nos convidam a imaginar, eles mesmos farão boas brincadeiras com seus pedacinhos e não sentirão falta alguma dessa tão poética ausência.

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