Hereros Angola, de Sergio Guerra (Brasil, 2013)

setembro 22, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

herores

“Um filme sobre o vaqueiro não é uma canção de vaqueiro,
mas um discurso para quem não é vaqueiro”.

Arthur Omar

Eles, os negros
por Victor Guimarães

Em Hereros Angola, o cinema vai novamente à África, em busca de uma tribo que vive isolada no deserto, e acompanha sua rotina nômade em companhia dos bois. Ao longo do filme, conheceremos o espaço em que eles vivem, veremos alguns de seus rostos, reuniremos informações sobre seus costumes e seus rituais. Dessa vez, na contramão do percurso etnográfico habitual, trata-se do cinema brasileiro. Mas é como se a origem do olhar não fizesse a menor diferença: todos os cacoetes da visada eurocêntrica e exotizante sobre o continente (enfrentada, filme a filme, pelos cineastas africanos já há tantas décadas) permanecem lá, intocados.

Ainda no prólogo, as imagens das imensas pradarias esvaziadas da presença humana, filmadas como um conjunto de cartões postais, anunciam o que está por vir. A câmera atua sempre da mesma maneira: ora como coletora de evidências empíricas para aquilo que se diz – máquina de inventariar registros –, ora como operadora de uma cosmética do exótico, tão antiga quanto impotente. A bela epígrafe de Maiakóvski que abre o filme (“Quero ser compreendido pelo meu país/ mas se não for/ tanto faz/ passarei por vocês/ de viés/ como a chuva/ oblíqua/ passa”) é sistematicamente contrariada pela narrativa: ainda que dissimulada pela estratégia observacional, a mania de explicação é patente. É como se fosse preciso conservar a tradição, descrever detalhadamente os sentidos de cada ritual para o espectador estrangeiro. E preciso, sobretudo, não se implicar no processo, catalogar as práticas sempre a meia distância e encaixotá-las no filme.

A luta de Jean Rouch para fazer ruir o edifício da enunciação cinematográfica a partir do encontro com os africanos, a luta da cineasta vietnamita Trinh T. Min-ha para transformar o speak about da etnografia fílmica tradicional em um speak nearby, mesmo tão antigas, poucas vezes fizeram tanto sentido. Do mesmo modo, o diagnóstico de Arthur Omar sobre o documentário brasileiro – no manifesto “O anti-documentário, provisoriamente” – data de um longínquo ano de 1978, mas continua atual – e urgente – como nunca: “Sempre a exterioridade, algo novo que se instaura, uma distância programada, que se constrói com a ilusão que a tira de cena para torná-la possível”. É certo que a voz over de Hereros Angola não parte mais de um narrador onisciente, mas é exatamente como se o fizesse. A montagem, soberana em seus desígnios, reúne fragmentos descontínuos de falas, mas não difere o peso das palavras dos integrantes da tribo, apenas as acumula em uma profusão de significantes destinados à manutenção de tudo exatamente como está: nós, com nosso olhar distanciado e estéril, e eles, os africanos, com seus costumes estranhos (somente à primeira vista, pois com sua estranheza “natural” não se produz nenhuma potência de cinema, nenhum elemento desestabilizador da exotização inicial).

Mesmo quando surgem, na fala dos hereros, formulações poderosas sobre o “nosso” mundo (“O estudo é o que te tira do sol e te põe na sombra”, diz um dos mais velhos da tribo), o modo do registro permanece idêntico. Diante de qualquer relato – seja a descrição da lida cotidiana com os bois, o protesto diante das severas divisões de classe no interior da tribo ou as confissões das escapadas das mulheres para fora do casamento –, a composição não se altera, o enquadramento não treme, o envelope permanece o mesmo. O pretenso despudor da câmera – que destila momentos como a matança dos bois, um parto em uma cabana, um ritual em que se removem os dentes das crianças – revela, no fundo, uma escritura fortemente controlada, conservadora e pudica: cada imagem surge e desaparece como qualquer outra, cada fragmento vale por qualquer outro, na medida em que todos podem ser igualmente tragados pela voracidade de uma montagem indiferente.

Mas há ainda os momentos em que a operação exotizante atinge um ápice quase insuportável. A certa altura, vemos algumas meninas em um ritual de iniciação à vida adulta. Diante dessas imagens, a onipresente voz over – nunca identificada, plenamente intercambiável – que descreve o rito é acrescida de violinos, fusões e uma inacreditável câmera lenta: síntese acabada de um olhar que empunha todas as ferramentas do empacotamento, todos os instrumentos da esterilização.

Perto do fim, um lampejo se insinua. Logo após a reclamação de um homem sobre os malefícios da presença do álcool na tribo, um bêbado – que se auto-intitula dono dos filhos e pai da aldeia – irrompe na cena para interceptar a mansidão da narrativa: grita, canta, agita os braços com energia; um bela contra-plongée destaca seu rosto contra o céu azul. Mas depois de um breve instante de intensidade – a sequência dura menos de dois minutos –, só o que a câmera pode fazer é afastar-se novamente, e o espectador já espera o corte. O atestado é de impotência absoluta: é preciso filmar mais algumas galinhas sob o sol.

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