Getúlio, de João Jardim (Brasil, 2014)

outubro 4, 2014 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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Canción para mi muerte
por Andrea Ormond 

Getúlio (2014) não é um filme ruim. É uma idealização. A pomba da paz, branquinha e singela, também não é apenas o símbolo do Espírito Santo. O pequenino animal esconde uma face oculta, desenhada justamente por um ateu. Pablo Picasso inventou a imagem da paz em Paris (1949) e o merchandising empesteou o século XX. Canecas, almofadas, brincos, lingeries, bugigangas de todo tipo, com a estampa do bicho. Getúlio Vargas, esta verdadeira pomba nas telas do longa-metragem de João Jardim, segue o mesmo destino. Carrega uma dupla função: tanto pode ser o presidente na véspera do golpe quanto o personagem bonzinho, que venderia as canecas, almofadas, brincos, lingeries, bugigangas de todo tipo.

Na torre de um multiplex qualquer, Getúlio transformou-se no fantasma das ilusões, perdido entre a pipoca e o guaraná. O morto que governa os vivos. O cadáver de mais de meio século. Isto explica a vontade de se produzir um filme sobre o 24 de agosto de 1954: a data que vira redonda em 2014. Sessenta anos em ponto. Percebemos aqui um problema que já traduz a essência do filme: o conflito entre a pretensão histórica (ser um “quase-documentário”) e a vontade de enternecer o gaúcho. Getúlio está subvertido em idoso deprimido, tristonho – e, por que não dizer?, macambúzio. Uma Lady Godiva no malsã das artimanhas políticas. Sessenta anos após a bala ter estourado o pijama imperial, a marca das seis décadas serve para um nó de desvio.

Está claro, desde a primeira fagulha, a intenção de transformar Getúlio em um thriller político. Fazer do Palácio do Catete um bunker, os últimos dias de Pompéia, o baile da Ilha Fiscal. A narrativa de Getúlio é calcada nos espaços obviamente fechados e nas movimentações de gabinete – a construção das horas que caem lá fora, nas ruas, e cá dentro, entre nós, os políticos, militares, jornalistas. Saguões, tapetes, escadas, o mordomo colocando nacos de bife no prato do Primeiro Mandatário – quem sabe, uma lembrança da empresa que Tony Ramos anunciava, antes da cruzada carnívora de Roberto Carlos. Tony Ramos incorpora as rotundas bochechas de Vargas, abandona a linha de galã e interioriza o homem perto de explodir. As baforadas gostosas de charuto dão a tônica do Velho poderoso, que gostava de rolar a língua pelas folhas marrons. Muy provavelmente, a associação entre comida/fumo/obesidade levará os espectadores puristas a imaginarem que o combo era mundano demais. “O Getúlio devia ter se cuidado, meu filho, estou te dizendo. Ele poderia estar aí até hoje” – sabe-se lá como.

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A opção pelos atos doces de Vargas aliviam a austeridade, diminuem a correria entre Palácio do Catete, Câmara dos Deputados e República do Galeão; o desespero de Carlos Lacerda (a Geni preferida dos roteiros de cinema no Brasil) e de Afonso Arinos (o democrata de um anteprojeto à Constituição de 88, vetado por José Sarney). Alguém sopra o fato de Getúlio “ter sido ditador”: eis o máximo da dubiedade. Não se explicita o que “ser ditador” significa – e significou. Se crimes contra a humanidade são imprescritíveis, que o diga Filinto Müller, chefe do DIP varguista, morto no acidente de Orly (junto com Agostinho dos Santos, o quase companheiro de vôo de José Sarney, que, reza a lenda, dispensou a viagem perto da hora do embarque). Carlos Lacerda no modelo de golpista histérico é o clichê para contrapor o Corvo a Vargas. Vilão e mocinho.

E assim Getúlio se alterna de caso pensado entre o drama político e o microcotidiano. Vemos a relação com os empregados, os tapinhas no ombro, as trocas cúmplices de olhar, o amor pela filha Alzira Vargas – conselheira fiel, similar ao Bob Kennedy de JFK. No entanto, quando menos se espera, lá vêm eles, os profanos e ululantes, os gatos-e-ratos mal contados. Desmontar a aura de Vargas seria um passo hábil, importante e digno de nota. Quase acontece – e vibramos – ao acompanhar por nanossegundos o banho do presidente, escondido por cortininhas feias. Nos excessos de intimidades de 2014, a vida real de Vargas seria um must. Poderia ter levado o filme além. Manteve-se no básico.

Talvez a correção desse mal-estar acontecesse no enterro, que não vemos recriado. Como em O Quarto do Filho (2001), de Nanni Moretti. A crueldade da despedida entre os que ficam e os que se vão. O adeus (interno) da família e o adeus (midiático) para a multidão. Esticado no esquife, mulheres carpideiras chorando, homens desmaiando, lenços ao vento. Getúlio saiu da vida para entrar na História com o imenso golpe narcísico do tiro no coração. O ferimento que se pode cobrir depois, com o terno preto de defunto. Tiro no crânio seria um bye bye à moda de Mojica Marins, nem um pouco recomendável: Alan Leroy (Trinta Anos Esta Noite) também teve o mesmo cuidado de Getúlio, o que nos leva à bizarra possibilidade de aproximação entre seres tão distantes. No mais das vezes, a trajetória de Vargas é a fogueira da brasilidade. Cheia de gestos largos, direitos sociais, torturas, cortina de ferro, megalomanias. Getúlio, o filme, não encara essa herança macabra. Quer ser apenas o Gegê exausto, perto do fim.

Em Lixo Extraodinário (2010), João Jardim optou por um ceticismo maior, no estilo documental que Janela da Alma (2001) havia anunciado. Getúlio é emotivo e, conscientemente ou não, vai fundo em uma tendência inspiradora, pouco investigada: a terceira idade. Na falta de Cinédia, de Vera Cruz e de outros heroes de 1954, os contemporâneos de Alzirinha invadem as salas e procuram o film de Jardim. “Cabeças brancas” – como diriam os malandros de terno panamá –, ex-ouvintes de Nora Ney e da Rádio Nacional. Sem perceberem, nos deixam uma pá de indagações. Pensemos o seguinte: quando um portenho chora diante do túmulo de Eva Perón (morta em 1952), ele realmente chora pela ex-cantora? Ou chora pela perda de si mesmo e de um tempo? Mirar no peixe, acertar na frigideira. A melancolia de Getúlio está fora da tela, bem mais do que na linearidade do filme. Bem mais do que na sepulcral simplificação de causos históricos. No futuro, um bloco deste e de novos longas aumentarão o quebra-cabeças. Enquanto isso, Charly García, outro portenho fervoroso, escreveria no calor dos anos: “Hubo un tiempo que fue hermoso/ Y fui libre de verdad/ Guardaba todos mis sueños/ En castillos de cristal”. Batizou os versos de Canción para mi muerte. Nada mais romântico e carinhoso.

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