Flores Raras, de Bruno Barreto (Brasil, 2013)

setembro 2, 2013 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

floresraras1

Doce etil lésbico
por Andrea Ormond

Isto é um roteiro, senhores. Anotem. Em um domingo de sol, a moça fraca encontra a moça forte. Vampiriza a criatura, joga no ar o doce etil lésbico. A forte cede, não aguenta a pressão e estropia-se toda. Bonecos de vudu, abajures espatifados na parede, gritos, acabou-se. A fraca se revolta, spit on her grave e imagina-se poderosa por ter roubado a fortaleza da outra. Escolhe uma nova coleguinha, prepara um novo berço. Um seio aqui, um cruzar de pernas ali, uma personalidade borderlinizinha matreira. Trocando em miúdos: às vezes, mulher gostar de outra é osso.

Flores Raras (2013), de Bruno Barreto, mexeu no vespeiro. Escolheu, entre as rosas, a rosa. Entre os gozos, o gozo. Conta a história do amor de Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares, desde 1951 a 1967. Recria, é claro, fatos históricos: Bishop e Lota já se conheciam antes de a americana desembarcar nos trópicos. O pai de Lota, José Eduardo de Macedo Soares, foi político seriíssimo mas também dândi, homossexual e senhor das Luzes como a filha. Não era, necessariamente, a imagem da austeridade paterna. As pequenas arrumações e o eterno conflito entre realidade e dramaturgia não condenam Flores Raras, como não condenam qualquer outro filme: basta haver a medida do ridículo. Bruno Barreto comprimiu a história em um formato que agradasse às tias dos supermercados, aos fofoqueiros nos salões de beleza, aos assinantes barrigudos de pay-per-view do campeonato brasileiro. O filme não agride os espectadores, portanto, com a violência real do jardim que, além de flores, também escondeu ressacas, ainda maiores do que as exibidas nos quase cento e vinte minutos de metragem.

floresraras3

Mas é bom que se diga: apesar de adocicar a pílula, Flores Raras já começa agradando ao mostrar o ícone novelesco, Glória Pires, sem laquês e lantejoulas. Pires está o mais próximo do queer que lhe foi possível. Há também a gringa ruiva porque hollywoodiana, ou hollywwodiana porque ruiva, deixando claro que existem dois mundos em choque: o Brasil e o estrangeiro. Os diálogos em português e em inglês. O tropical e o americano. O quente e o frio. E todas as aliterações que cabem debaixo desse pano. Quando Bishop (Miranda Otto) se entrega a Lota (Glória Pires), acontece, porém, algo muito maior. Não é apenas a aplicação cinematográfica da “política da boa vizinhança”. Nem Lota é o Zé Carioca para o Pato Donald neurastênico de Bishop. O filme conspira sob a beleza de Otto e Pires. As atrizes flanam, encantadoras. Estavam com a faca e o queijo na mão, perto de tocarem no continente desconhecido: o erotismo butchy das biografadas. Lembremos, também, que Lota e Bishop regulavam em idades, para lá de quarentonas. O amor entre as duas era maduro e, se preferirem, uma adulta “epifania” – termo que agrada aos adoradores de Clarice Lispector, vizinha de Lota, debruçadas no mar do Leme.

Por um aspecto, o roteiro serve de plataforma para a independência de Bishop. Ela é encarada como um processo irreversível, em que a poeta procura o mundo fora do útero de Lota, àquela altura já alquebrada pela fúria empreendedora de criar o Aterro do Flamengo. Bishop é quase a Malu Mulher sáfica. E Lota, apesar do estilo sargentão em guerra, pôs no colo a menina amada. Demorou para perceber que, na verdade, a imagem era dela própria: escondeu o vazio no excesso de protecionismo com a pequena. Não à toa, sofre o fim trágico: o acting out do suicídio, em pleno apartamento novaiorquino (novo útero) de Bishop. Sabemos que Elizabeth deveria ficar poucos dias no Brasil e permaneceu anos. Acabou envolvida na flauta de Lota, a incendiária de Hamelin e chegou a dedicar-lhe um livro (Questões de viagem), com os versos de Camões: “O dar-vos quanto tenho e quanto posso, que quanto mais vos pago, mais vos devo”. Achamos aí, provavelmente, o maior subtítulo que se possa dar à relação das duas. É a prova da gratidão e do desejo de fusionamento que, levados ao cume, também se quebram com a mesma intensidade no chão. As cenas de intimidade do casal procuram demonstrar as banalidades (ricas) do cotidiano, ocupando grande parte de Flores Raras. Digo grande porque não é a única. Além do amor, poucos perceberam que o filme também coloca o dedo na ferida: marca posição ao reanalisar o governo Carlos Lacerda, então príncipe da Guanabara. Coincidentemente, a dedicatória nos créditos finais vai para o vice-governador, Raphael de Almeida Magalhães.

floresraras2

Quando ainda vibrava e pulava, partiu de Lacerda a carta branca para uma homossexual assumida. Camaradas do Partidão não topariam tamanha ousadia. Mais do que isto, deu à Lota a chance de encarnar o empreendedorismo, o humanismo e, consequentemente, as acusações de elitismo – típicas da nossa eterna dubiedade. Sob o pio argumento de uma cidade para pedestres, criou o Parque do Flamengo. Infernizou palácios, bebeu conhaque, plantou bromélias. A passagem acessória do Lacerda (Marcello Airoldi) de Barreto não está longe do clima informalizado e escrachado com que era tratado por Macedo Soares – autodidata, que nunca pisou em um banco de universidade. Lota sabia que o acervo imemorial de um lugar está nas pessoas e não nos carros. Vá lá que repetiu a doutrina de outros urbanistas – a biblioteca da mulher era arabesca –, mas dêem a ela o Oscar. Façamos uma prece, nesta hora da noite, quando os carros servem de patologia a quem desaprendeu a caminhar e não mais entende o local a que pertence.

Causa espanto a passagem rápida entre a inauguração do Parque e a entrada de Lacerda no exílio. Acontece em segundos, complicando a vida do espectador. Um ouvido mais treinado também perceberá que o locutor de rádio come bola: em 31 de março de 1964, ninguém seria louco de falar em “golpe”. Falava-se, obviamente, em “revolução”. Trata-se de questões menores diante, por exemplo, da recusa de Bishop em mamar uma garrafa de pinga, oferecida por um mendigo. A cena quer afirmar ao público a mulher alcoólatra e agora resoluta, decidida a sair do Brasil, a sair de Lota, a sair do álcool. O moralismo contradiz a beleza do filme. Bishop poderia beber, fazer o quatro trôpego e da mesma maneira ter a necessidade de se afastar de Lota. Ainda assim, Flores Raras cumpre com elegância a ingrata missão de driblar sectarismos – no campo da sexualidade e das políticas palacianas. Bruno Barreto refaz-se do choque dos últimos lançamentos e volta a tomar um norte que promete render com o tempo.

Share Button