Eu Sou Carlos Imperial, de Renato Terra e Ricardo Calil (Brasil, 2016)

setembro 1, 2016 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

eusoucarlosimperial

Deu zebra
por Andrea Ormond

Nas décadas de 1970 e 80 eram comuns, nos jornais brasileiros, anúncios das estreias de filmes nacionais. Em vez de simples informativos, os reclames traziam ares dantescos: “Êxito retumbante na Europa!”, “Milhões de ingressos vendidos nos Estados Unidos da América!”, “Premiado em dezenas de países!”. Jece Valadão e Carlo Mossy, por exemplo, foram adeptos da prática. Beneficiados por um país fechado, onde quase ninguém viajava para o exterior (em certa época absurda, o governo militar cobrava uma taxa de quem saísse do país), nossos artistas sentiam-se impelidos a uma criatividade delirante. E não se limitavam a inventar sucessos no estrangeiro. Em matéria sobre Carlos Imperial, a Revista do Rádio n. 1064 afirmava, nada mais, nada menos, que Imperial havia sido prefeito de sua cidade natal, Cachoeiro do Itapemirim.

Hoje esse tipo de “informação” não aguentaria de pé quinze minutos, bastando uma pesquisa no Google ou um rolo compressor de comentários no Facebook. Por isso é que devemos analisar com bastante cuidado Eu Sou Carlos Imperial (2015), documentário de Renato Terra e Ricardo Calil sobre a vida de um dos maiores agitadores culturais que o Brasil já conheceu. Imperial foi um gênio, não tenham dúvidas disso. Mas suas práticas duvidosas, seu machismo exacerbado, suas mentiras patológicas, parecem tão démodés quanto um Opala Comodoro 76 ou um Grapette no Restaurante Cirandinha. Logo, o encantamento do filme deveria estar justamente nessa reconstrução histórica. Imperial era tão maluco, tão cafajeste (certa vez outra revista, acho que a Manchete, promoveu um duelo de “cafajestagens” entre ele e Jece. E ambos têm autobiografias intituladas Memórias de um Cafajeste) que relatar sua trajetória, seus causos, como fez Denilson Monteiro no delicioso Dez, Nota Dez!, bastaria para entreter e (chocar) o espectador na medida certa.

A maionese desanda quando, ao não conseguir dar forma organizada a esse percurso, o documentário apela para depoimentos emocionados, licenças poéticas e fragmentos memorialistas. Uma pessoa de vinte e poucos anos, que nasceu depois da morte de Imperial, sai do cinema sem aprender muita coisa. E, percebam, aprender sobre Imperial é exercício de inteligência portentoso, não só porque o sujeito contrariava toda a lógica, também porque oferecia narrativas caudalosas, tanto as que inventava quanto as que vivia realmente por conta de sua joie de vivre.

Mas tomem falas redundantes e informações desencontradas. Nem o ator Luca de Castro, vivendo múltiplos personagens fictícios, cria algum encantamento. Nem Roberto Carlos, saindo da toca, deixa claro a que veio. Assistindo a Eu Sou Carlos Imperial, pela primeira vez consegui bocejar ao ouvir o nome do velho Impera, herói da minha infância, candidato a prefeito do Rio pelo Partido Tancredista Nacional, com o apoio dos patrulheiros mirins (e de suas inseparáveis lebres, que durante a campanha foram transmutadas em “zebrinhas”). Por falar em lebres, uma delas surge indignada, dizendo que nunca fez sexo com o patrão. E nós com isso? Para a criançada, lebres eram propriedades do Imperial assim como o céu é do condor.

As coisas melhoram quando um Imperial magríssimo, semanas antes do fim em 1992, dá entrevista para o pesquisador Paulo César Araújo e, como sempre, não pára de fabricar porandubas da carochinha. Até tiro no joelho o homem levou, meu Deus do céu! Só Imperial salva Imperial no filme. Ele aparece, enrola, enrola e a felicidade toma conta de nós. Ok, é uma felicidade excêntrica, dos que torciam para Nelson Piquet contra Senna, de quem achava Odete Roitman uma gracinha. Para gostarmos de Imperial, precisamos aceitar que as utopias já morreram e salve-se quem puder. Definitivamente não combina com um “mundo melhor”, a grande panaceia contemporânea.

Tenho certa desconfiança de que, se vivo fosse, Impera se apoderaria da moderna hipocrisia ao seu favor. Sim, seus métodos e discursos soam anacrônicos, mas ele teria criado outros. E outros. E diria o oposto do que disse anteriormente, acrescentando novos detalhes. Mostrar esse bebê sociopata, perverso polimorfo de 130 kg, que bebia Coca-Cola o dia todo e vivia em casa de cuecas com mulheres que, avisava, precisavam ter “o predicado da burrice”, não é seminário lacaniano. Ou vai ou racha. Mas para cada ensaio de decisão, Eu Sou Carlos Imperial dá passinhos pra trás, mia um pouco, e mostra uma namorada pudica, uma filha dizendo que ele nunca foi pai de verdade, uma lebre queixosa, um amigo cheio de reticências. O filho Marco Antônio, pelo menos, coloca as coisas de outra forma: o velho disse para não ter filhos, o rapaz teve onze. Era contra maconha e o rebento fez música a favor da erva do capeta. Só podia ser filho do Imperial mesmo.

Recomendo ao leitor, que quiser conhecer a vida e obra do mito, cair de boca no livro de Denilson Monteiro. Em seguida, lembrar da Perla cantando “Pequenina” e digitar no Youtube com os próprios dedinhos: “Carlos Imperial”. Horas de vídeos, inclusive filmes completos como A Viúva Virgem, não deixarão dúvidas sobre o fascínio que o ogro exerce. Infelizmente, o fascínio sumiu na poeira do tempo. Até seu pupilo, Wilson Simonal, foi em parte redimido, virou trilha sonora de convescotes hipsters, mas quem sabe hoje do ex-membro da turma da Miguel Lemos? Eu Sou Carlos Imperial faria sentido se o reinventasse. Em vez de ajudar, confunde, obscurece, aborrece. No duro, no duro, eu que também sou cria de Copacabana, alimentada no mesmo milk-shake do Bob’s da Domingos Ferreira, só respeitaria um documentário sobre Impera que conseguisse falar com Mário Gomes. O entrevistador usando uma cenoura de microfone. Como tudo aqui é 446, sem potência e irreverência para chegar a “dez, nota dez!”, tire suas próprias conclusões caseiras e será bem mais divertido. Eu Sou Carlos Imperial é um documentário que deu zebra.

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